João Batista Damasceno: Casos isolados, mas recorrentes
A repercussão do caso do homem jogado de uma ponte por um policial militar em São Paulo aguçou a discussão sobre a violência policial em todo o país. Diversos policiais militares manifestaram preocupação em não serem vistos pela sociedade como matadores fardados, notadamente por não fazerem parte dos grupos premiados e condecorados por similares atuações. No Rio de Janeiro, tivemos não apenas condecorações por “bravura”, mas premiação aos policiais matadores. Foi a “Gratificação Faroeste”. Tratava-se de prêmio em dinheiro aos policiais envolvidos em confronto do qual resultasse morte ou ferimento de pessoas consideradas indesejáveis. Foi implantada no governo Marcello Alencar, eleito em 1996, e tinha como secretário de segurança o general Nilton Cerqueira e Chefe da Polícia Civil o delegado Hélio Luz. O general que fora o Comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro quando da Bomba do Riocentro é, também, apontado como o matador de Carlos Lamarca.
O poder nem sempre fala. Por vezes emite sinais. Diante de denúncias de abusos e mortes cometidas por policiais militares na “Operação Escudo”, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, respondeu com ironia às perguntas formalizadas pelo Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) dizendo: “Nossa intenção é proteger a sociedade. Nós estamos fazendo o que é correto, com muita determinação e profissionalismo (...). Sinceramente, eu tenho muita tranquilidade com relação ao que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na (sic) ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta que eu não estou nem aí”. Assim como a “Gratificação Faroeste” incentivou o aumento da violência policial, as palavras do governador de São Paulo serviram de incentivo aos matadores.
O “Tô nem aí!” do governador paulista para as mortes que se sucediam foi visto por parte da tropa como autorização para as execuções, e assim foi feito. Os casos considerados isolados de violência policial, mas recorrentes, chamam a atenção para outro aspecto da questão. Nem todos os policiais concordam com a política de segurança que coloca suas vidas e integridade em risco. Mesmo as corporações militares, como nenhuma outra com corporativismo acentuado, os policiais não são um bloco monolítico, constituído de uma única peça, capazes de apoiar unissonamente e serem usados como marionetes por políticos que tiram proveito do anseio de sangue de bases eleitorais. Apesar da política de extermínio que se difunde pelo país e do gozo com que alguns policiais a executam, parte da tropa não concorda em ser transformada em executores de pretos e pretos, nem na instrumentalização da corporação para fins espúrios. Dentre os policiais que não concordam em fazer o ‘serviço sujo’ estão os integrantes do Movimento Policiais Antifascismo, que reúne policiais militares, policiais civis e dos Corpos de Bombeiro de todo o país. Além desses policiais integrantes do movimento, muitos outros querem ser tratados como trabalhadores, com os direitos e deveres de todos os agentes públicos, sem que sejam compelidos à atuação contra a sociedade brasileira, notadamente pretos e pobres das favelas e periferias das grandes cidades.
A sinalização dada pelo governador paulista de que não estava nem aí para a truculência policial, é vista por muitas autoridades militares como difusão da certeza de impunidade pelos crimes cometidos, capaz de minar a própria autoridade dos comandantes que não concordam com a transformação de sua instituição em grupo de extermínio. Alguns policiais paulistas manifestaram contrariedade ao desmantelamento do programa de câmeras corporais, alegando que tais câmaras serviam como prova da regularidade de suas atuações e que somente aqueles que atuam à margem da legalidade desejam que suas atividades não sejam registradas.
Estados como o de São Paulo e do Rio de Janeiro gastam mais com segurança do que com educação e saúde juntos. As constantes descontinuidades das políticas de segurança pública geram incertezas para os próprios agentes das forças policiais. Enquanto alguns tentam sempre se adaptar às novas diretrizes, outros sequer se importam com elas, consideradas transitórias, e se mantêm nas velhas diretrizes do desrespeito à vida e à dignidade da pessoa humana.
Muitos policiais estão apreensivos com a elevação do índice de violência do Estado, cuja execução lhes compete, colocando-os contra a própria sociedade. Não são poucos os casos de afastamento de atividade por problemas psiquiátricos, assim como o suicídio de policiais. Parcela dos policiais tem adoecido na medida em que são vistos pela sociedade, pelos vizinhos e até por familiares como matadores fardados. Há uma demanda para que sejam vistos como trabalhadores exercentes de suas atividades com profissionalismo, a fim de que ao final de cada jornada possam voltar para suas casas vivos, sem risco de vida e com o reconhecimento pelos serviços que tenham prestado à sociedade. Mas isto só será possível se os que ordenam a política de confronto forem responsabilizados. E o caminho não é a ONU. É o Tribunal Penal Internacional que julga crimes contra a humanidade, que o governador paulista não citou. Diante do TPI, o governador paulista não diria “Tô nem aí”.
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