O Carnaval do Rio de Janeiro é muito mais que uma festa: é um ato de resistência. Em 2025, as escolas de samba levam para a avenida enredos que celebram as tradições culturais africanas, reafirmando a cultura negra como pilar de identidade e luta. A Unidos do Viradouro, Imperatriz Leopoldinense e a Unidos da Tijuca trazem, respectivamente, as histórias de Malunguinho, Obatalá e Logunedé, divindades que simbolizam a cura e a resistência, a história da criação do mundo pela perspectiva do povo yorubá e o grito de liberdade e potência das crianças e jovens das favelas representado pela figura do Orixá pequeno e guerreiro Logunedé. Em um país onde a intolerância religiosa cresce assustadoramente, esses enredos são um grito de liberdade e um lembrete da força ancestral negra como alicerce central de um dos maiores espetáculos culturais da Terra.
A campeã de 2024, Unidos do Viradouro, apresenta o enredo sobre Malunguinho, figura que transcende o imaginário religioso. Representado como um caboclo, mestre e Exu, Malunguinho carrega uma chave mágica que abre senzalas e fecha corpos contra a violência. Ele é um símbolo da luta quilombola, e representa também as proteções que o povo negro precisa nas batalhas contra a discriminação e as perseguições do dia a dia. Por outro lado também representa a ciência por trás das medicinas dos pajés e povos tradicionais que juntamente com os africanos escravizados foram criando laços que serviria para o desenvolvimento de novas práticas espirituais no Brasil, trazendo consigo os caminhos da cura e da proteção para a população mais vulnerável da sociedade. Ao contar sua história, a Viradouro não apenas celebra a espiritualidade afro-indígena brasileira, mas também denuncia o racismo religioso e o apagamento cultural. Malunguinho é a chave que abre portas para a liberdade e a memória.
A Imperatriz Leopoldinense homenageia Obatalá, o orixá da criação, da pureza e da paz. Responsável por moldar os seres humanos a partir do barro, Obatalá representa a harmonia e a paz como ferramentas de equanimidade e justiça social. O enredo da escola resgata a importância da ancestralidade como base para a construção de um futuro mais justo. Em um contexto de crescente intolerância religiosa, celebrar Obatalá é também uma forma de resistir ao apagamento das narrativas sagradas africanas.
A Unidos da Tijuca traz para a avenida a história de Logunedé, orixá que reúne as características de Oxóssi e Oxum. Conhecido como o "menino guerreiro", Logunedé transita entre o rio e a floresta, simbolizando a dualidade entre o bem e o mal, a alegria e o sofrimento dos jovens da periferia e das favelas, mas principalmente a sua inteligência e adaptabilidade frente a um momento cada vez mais violento e sanguinário dos morros e favelas cariocas. Seu enredo ressalta a conexão com a natureza e a sabedoria ancestral, elementos fundamentais da cosmovisão africana. A escola reforça a ideia de que a espiritualidade negra é uma fonte de força e resistência, capaz de enfrentar as adversidades impostas pelo racismo estrutural enfrentado pelos jovens negros das favelas.
O Carnaval carioca é, há décadas, um espaço de resistência cultural e política. No entanto, essa resistência não ocorre sem desafios. Segundo dados do Disque 100, houve um aumento de 54% nos casos de intolerância religiosa entre 2021 e 2023, sendo a maioria das vítimas praticantes de religiões afro-brasileiras. Terreiros são invadidos, líderes religiosos são perseguidos, e símbolos sagrados são ridicularizados. Nesse contexto, os enredos das escolas de samba em 2025 são um ato político, uma forma de visibilizar e valorizar as tradições negras que são constantemente atacadas.
O Carnaval de 2025 nos lembra que a cultura negra é viva, pulsante e resistente. Através de Malunguinho, Obatalá e Logunedé, as escolas de samba celebram a ancestralidade e denunciam o racismo religioso. Em um país marcado pela intolerância, esses enredos são mais que espetáculos: são ferramentas de educação, resistência e cura. Que os tambores ancestrais continuem rufando história na avenida do samba, e que a chave de Malunguinho abra não apenas senzalas, mas também corações e mentes. Axé!
Vitor Friary, Doutorando em Estudos Africanos pelo Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa, Babalawo e Babalorixá, mestre em Psicologia e autor de livros no Brasil e EUA
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