ANTÔNIO GERALDO DA SILVADIVULGAÇÃO

O Brasil voltou a discutir o Projeto de Lei nº 399/2015, que pretende autorizar o plantio de Cannabis sativa sob a justificativa de “uso medicinal”. É essencial afirmar com precisão: a ciência não reconhece a planta cannabis como medicamento. Para ser medicamento, um produto precisa apresentar moléculas isoladas, pureza, dose padronizada, estabilidade e previsibilidade farmacológica. A planta, porém, contém mais de 500 substâncias químicas e mais de 100 canabinoides, com composição instável que varia conforme clima, solo, cultivo e armazenamento. Essa variabilidade inviabiliza qualquer uso terapêutico seguro. Não por acaso, a FDA jamais aprovou a planta cannabis como fármaco, reconhecendo apenas compostos purificados, como o canabidiol isolado.
As evidências científicas demonstram riscos significativos. O uso regular pode triplicar o risco de psicoses, incluindo esquizofrenia, especialmente em jovens vulneráveis. O THC altera áreas cerebrais ligadas à memória, atenção, emoções e controle de impulsos, prejudicando desempenho cognitivo, produtividade e tomada de decisões. Há ainda aumento documentado de acidentes graves de trânsito e risco de dependência frequentemente subestimado. Em um país que já lidera índices globais de ansiedade e ocupa posição de destaque em depressão, ampliar o acesso a uma substância que pode agravar quadros emocionais é uma decisão arriscada e imprudente.
A ideia de “uso medicinal da maconha” repete estratégias antigas da indústria do tabaco, que já apresentou cigarros como produtos “seguros”. Reduzir artificialmente a percepção de risco nunca favoreceu a saúde pública, apenas interesses econômicos.
A experiência internacional reforça o alerta. Holanda, Itália e Portugal não eliminaram o tráfico e observaram aumento de consumo entre adolescentes. Em diversos estados norte-americanos, o uso dito “medicinal” abriu caminho rápido para o recreativo, com crescimento de intoxicações em crianças, dependência e produtos com concentrações altíssimas de THC. Canadá e Uruguai viram surgir apresentações atrativas para jovens, estimulando experimentação precoce. A lógica é constante: quando o acesso cresce, o consumo cresce, e os danos também.
Outro equívoco é acreditar que a legalização reduziria o poder do crime organizado. Nos países que flexibilizaram, o mercado ilegal continuou competitivo, oferecendo produtos mais baratos, mais potentes e sem qualquer controle. O resultado foi a coexistência entre mercado legal e clandestino, aumentando a circulação da substância sem impacto real sobre a violência.
O Brasil já enfrenta elevada carga de sofrimento mental. Permitir o plantio e uso ampliado da cannabis significa aumentar a demanda por atendimento psiquiátrico, sobrecarregar o SUS, facilitar o desencadeamento de doenças mentais graves e comprometer o desenvolvimento de crianças e adolescentes. É uma decisão de grande impacto sobre milhões de famílias.
A votação do PL 399/2015 em meio a eventos que dispersam a atenção pública acende um alerta. Não se trata de moralismo ou ideologia, mas de proteger vidas, defender a saúde mental da população e garantir responsabilidade sanitária. O debate precisa ocorrer com ciência, transparência e honestidade, sem a ilusão de que o Brasil terá sucesso onde outros países já enfrentaram graves consequências.
A psiquiatria brasileira permanece firme na defesa do que importa: segurança, saúde pública e proteção da mente humana.
Antônio Geraldo da Silva é presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria