Grupo Damas Silenciadas foi criado em março de 2022, com o objetivo de ajudar e acolher mulheres vítimas de violência domésticaLaís de Moraes

Rio - Os cabelos com tranças escondem a cicatriz de uma pedrada que Camila Cattoi, de 44 anos, levou do ex-marido. Os constantes abusos, brigas e agressões foram cenários em sua vida por oito anos. A necessidade financeira e a falta de orientação sobre relacionamentos foram agravantes para que ela continuasse sendo submetida a tapas, socos e xingamentos. Atualmente, Camila faz parte de um grupo de apoio à vítimas de violência doméstica, chamado "Damas Silenciadas", que a ajudou a reconstruir sua vida e oferece acolhimento e recomeço às mulheres.


Tudo começou quando ainda era pequena e morava na casa de sua mãe, na Zona Sul do Rio. A produtora cultural era abusada pelo padrasto dentro da própria casa, e presenciava brigas e agressões entre ele e sua mãe. "Isso tudo acabou influenciando a minha vida e o meu primeiro relacionamento, que foi com o meu ex-marido muito abusivo. Hoje eu consigo enxergar através do 'Damas Silenciadas' o quanto eu me calei, o quanto fui silenciada pelo medo e pela vergonha. Com a ajuda do grupo eu consegui desabafar e me curar. Hoje consigo exercer meu trabalho e estar à frente de um ambiente preponderantemente masculino, como as rodas de hip-hop".

De acordo com Camila, o seu casamento precoce, aos 18, foi para não ter que conviver com o ambiente de brigas e abusos dentro de casa. "Quando meu padrasto foi morar lá em casa, o inferno começou. Eu tinha uns 13 anos na época e sempre fui alta, com um corpo mais desenvolvido também. Não conseguia dormir direito de medo. Eu falava para a minha mãe, mas ela apaixonada não queria criar escândalo na família. Adivinha quem saiu de casa? Eu".

Na esperança de tentar uma vida nova, Camila caiu em uma realidade de dor e desespero. No período em que foi casada, trabalhava como telemarketing e passava o dia fora. Quando estava em casa com o seu companheiro, era agredida. "A cena dele falando que ia ficar tudo bem e a minha boca sangrando era uma forma de conforto para mim. Eu mentia para o meu chefe, que me perguntava o motivo dos machucados, e falava que era o ônibus freando. Até eu acreditava no que dizia para me consolar".

Por diversas vezes ela denunciou as agressões, sem resultado. "Na época, as mulheres não tinham tanta voz como hoje. Eu carrego as marcas dessas agressões e só de lembrar me vem lágrimas. Foi quando conheci uma pessoa, que me ensinou que aquilo não era normal, que tive força para sair desse relacionamento dependente.Depois eu ainda tive uma sequência de relações agressivas porque era o que eu tinha de exemplo".

Hoje, Camila tem um relacionamento saudável e, com a ajuda de grupos como o "Damas Silenciadas", ela conseguiu superar seus traumas, aos poucos, e se dar uma nova chance. "Criei muito trauma na minha cabeça. Meu namorado é muito legal, companheiro, entende meus medos. A gente conversa sobre tudo. Minha vida não foi fácil, mas graças a ajuda de outras mulheres a gente consegue dar a volta por cima. Se eu não tivesse dado um fim no meu antigo relacionamento, a gente ia se matar".

História do grupo

O grupo "Damas Silenciadas" nasceu em março de 2022, após uma amiga das fundadoras do grupo, que era rapper, ter sido assassinada pelo marido, com 60% do corpo queimado. Segundo Mônica Xavier, 41, coordenadora de ações do coletivo, desde a pandemia o índice de violência doméstica e feminicídio cresceram muito, principalmente nas periferias e comunidades do Rio.

"Muitas mulheres não sabem a quem recorrer em uma situação dessa e ficam sem orientação, sem saber o que fazer e sem forças para sair do relacionamento. Esse grupo tem o objetivo de pensar em ações que minimizem tanta violência. A gente se deparou com muitos casos de abusos, fomos ouvindo muitos relatos e avançando para ajudar", disse.

Segundo a coordenadora, ações como cursos de línguas, aulas, palestras e roda de conversa são feitas para ajudar essas mulheres a empreenderem e não dependerem financeiramente de ninguém. "Os principais perfis que nos procuram são: negras, de periferia e empreendedoras. A grande maioria sofreu violência, inúmeros abusos, incluindo agressões físicas e psicológicas e encontraram no empreendedorismo uma motivação para romper o ciclo da violência. Nós entendemos que se a mulher não tiver amparo para se desenvolver economicamente, ela fica ainda mais vulnerável", ressaltou Mônica.

A fundadora Edimara Celi, 43, explicou que durante a pandemia, fazia alguns projetos sociais e estava sentindo que muitas mulheres precisavam desabafar. "Elas começaram a abrir o coração para a gente, contando a rotina e relatando violência dentro de casa, relacionamento tóxico, entre outros. Hoje somos uma grande rede de acolhimento, mas não permanecendo apenas nesse lugar de cuidar da dor, mas de mudar a realidade dessas mulheres".

Ela também declarou que o projeto tem apoio da Secretaria Municipal da Mulher e ressaltou que o principal objetivo é o acolhimento. "Queremos falar cada vez mais sobre transformação para essas mulheres que vêm nos procurar tão debilitadas. A gente vê potência nelas e buscamos cada vez mais parcerias para ajudá-las em sua independência. Sabemos que dentro das favelas é muito mais difícil conseguir denunciar o seu agressor, então a partir disso somos uma rede de proteção", destacou Edimara.
A Secretaria da Mulher informou, através de nota, que apoia o grupo oferecendo cursos de capacitação. Um deles foi o curso de idiomas em Inglês e Espanhol chamado Mulheres Bilíngues, onde uma das 18 turmas foi no espaço da Instituição Parceria. Ao todo, cerca de 255 mulheres foram formadas. 

De acordo com o Instituto de Segurança Pública (ISP), o número de ligações do Disque Denúncia sobre violência doméstica apresentou um aumento significativo em abril de 2020, que foi um dos períodos de maior isolamento social, se mantendo em alta nos três meses posteriores. Já o número de ligações do 190 se manteve estável mesmo no momento de quarentena mais rígida, evidenciando que este seria um possível canal pelo qual as mulheres estariam conseguindo realizar as suas denúncias.
Iniciativas municipais
Segundo a Secretaria Municipal da Mulher, desde 2021 a Secretaria de Políticas e Promoção da Mulher vem implementando serviços e campanhas de conscientização sobre violência. O primeiro serviço foi o Cartão Move-Mulher, que é um cartão de gratuidade de passagem para que a mulher consiga se locomover pela cidade e ter acesso aos órgãos da rede de enfrentamento à violência. Cerca de 2.500 cartões foram entregues às mulheres que sofreram algum tipo de agressão ou abuso. Pelo menos 400 cartões de crédito com valor de R$ 500 também foram distribuídos. 
Também houve o aumento de três para 21 locais de atendimento para mulheres, inaugurando entre eles a terceira Casa da Mulher Carioca Elza Soares, em Padre Miguel, Zona Oeste do Rio e o Centro Especializado de Atendimento à Mulher (CEAM) Tia Gaúcha. 
De acordo com a secretária da Mulher, Joyce Trindade, a violência contra mulher muitas vezes conta com a dependência financeira que a mulher sofre com o parceiro. "Emprego e renda são as chaves para que essa mulher não se sinta obrigada a continuar em um relacionamento abusivo. Por isso, nosso foco é na capacitação e independência financeira delas. Informação salva vidas!". 
Locais de atendimento para mulheres em situação de violência na cidade do Rio

CEAM Chiquinha Gonzaga
Rua Benedito Hipólito, 125 - Centro
(21) 2517-2726 / 98555-2151

NEAP Chiquinha Gonzaga
Rua Benedito Hipólito nº 125, Centro
Funcionamento: de segunda à sexta de 9h às 16h

CEAM Tia Gaúcha

Policlínica Lincoln de Freitas Filho - Rua Álvaro Alberto, 601 - Santa Cruz

NEAP Tia Gaúcha

Policlínica Lincoln de Freitas Filho - Rua Álvaro Alberto, 601 - Santa Cruz

Casa da Mulher Carioca Tia Doca / NEAM
Rua Júlio Fragoso, 47 – Madureira
(21) 2452-2217 / 3796-0228

Casa da Mulher Carioca Dinah Coutinho/NEAM
Rua Limites, 1349 – Realengo
(21) 3464-1870

Casa da Mulher Carioca Elza Soares
Rua Marechal Falcão da Frota, n. 1782 , Padre Miguel