Simplesmente achei linda a ideia de o trabalho ser uma herança, uma das mais eternas que podemos ter na vidaArte: Paulo Márcio

Amanheci outro dia bem falante — o que, de uns tempos para cá, não é novidade na minha rotina. Ficou para trás a época em que a minha timidez me impedia de interagir com as pessoas na rua e nos lugares que eu frequentava. Assim, cheguei ao salão de beleza para fazer a unha e, com o esmalte vermelho já escolhido, reparei que a manicure estava com as mãos feitas. Comentei que estavam bonitas e ela me contou que a filha havia pintado as suas unhas porque estava aprendendo o ofício. Simplesmente achei linda a ideia de o trabalho ser uma herança, uma das mais eternas que podemos ter na vida.
Enquanto ela tratava das minhas mãos com uma minuciosa atenção a cada detalhe, eu reparava nas conversas ao meu redor. Enquanto isso, uma outra cliente ouviu o celular tocar e logo imaginou se tratar da sua mãe. Resolveu atender a ligação prontamente. E era mesmo! Ali perto, uma outra profissional do salão contou que houve um tempo em que até escolheu um toque específico para identificar os telefonemas da sua mãe.
“Quando eu ouvia o som, eu já sabia que era a minha véia”, disse ela, lembrando que sempre vinham pedidos para passar em algum supermercado para aproveitar uma promoção imperdível. Minha mãe também era dessas — eu até brincava que, se fôssemos aproveitar os descontos de todos os lugares, iríamos fazer um tour por vários mercados, gastando mais gasolina do que o habitual. E, no fim das contas, não haveria economia nenhuma. Hoje, a lista de compras é feita pelo meu pai: saio de casa com a relação escrita num papel, mas ela vai ganhando novos itens através de mensagens de Whatsapp quando já estou na rua.
Diante daquelas conversas no salão, fiquei pensando que o nosso coração sempre identifica a proximidade de quem amamos. É como se o nosso sentimento fosse ritmado por uma melodia que passa a tocar dentro de nós no momento em que nascemos. O mesmo acontece de pais para filhos. Foi o que imaginei quando o papo no salão enveredou por uma palavrinha muito repetida: mamãe. Depois que aprendemos a balbuciá-la, nós nunca mais nos esquecemos dela: saímos gritando, chamando e repetindo ‘mamãe’ à exaustão. Até quando as mães passam a nos guiar de outro plano, tudo o que queremos, em certos momentos, é ter a chance de fazer novamente esse chamado bem especial. Quando fico doente, por exemplo, eu trato de recordá-lo no meu cantinho e acredito estar sendo ouvida pela minha mãe de alguma maneira.
Todas as cenas daquela manhã no salão de beleza ficaram guardadas na minha memória. Eu as repassei incontáveis vezes na lembrança e hoje as registro em texto, numa forma de reforçar o quanto é preciosa a chance de criarmos recordações ao lado de quem amamos. Foi assim também em Rio das Ostras, pouco antes do Réveillon, quando eu e meu pai fomos a uma lojinha que vende vários itens para casa. Na saída, já com as sacolas em mãos, tivemos que ficar alguns minutos embaixo de uma marquise por conta de uma chuvarada. Acredito que essa cena é única e insubstituível. Assim como os pedidos de compras no mercado ou os inúmeros telefonemas feitos pelas mães durante o dia. Sempre haverá um toque no nosso celular mais especial do que qualquer outro no mundo. E só o nosso coração consegue escutá-lo.