Grupo Caldo de Piranha, formado apenas por mulheres interessadas em samba, choro e instrumentos, se reúne para estudar grandes nomes dos ritmos e tocarDivulgação

Rio - Um lugar de acolhimento, escuta, troca e muito samba e choro. Essa é a ideia do grupo formado por 17 mulheres chamado Caldo de Piranha que, além de ser musical, é também um espaço de estudo sobre os ritmos, tendo como principais peças-chave grandes nomes do samba brasileiro, como Elza Soares, Tia Ciata e Ivone Lara. Ao fim de cada ciclo de pesquisa, as mulheres instrumentistas se reúnem em volta de uma mesa para fazer uma grande roda aberta para outras que queiram tocar.
A ideia surgiu a partir do movimento Chora Mulheres na Roda, iniciado por mulheres já instrumentistas que atuavam na cidade com uma roda didática de choro. Atualmente, as 17 integrantes se encontram, fazem ciclos de estudo em torno de diferentes artistas do samba e se aprofundam na obra de cada um, dando corpo ao repertório musical do próprio grupo.
A caminhada na música de Vanessa Telles, de 45 anos, professora de Geografia, começou em 2016, quando ela se interessou pelo estudo do cavaco e choro. "Eu já frequentava muitas rodas, sempre muito presentes na minha vida. A cultura aqui de casa foi construída a partir do samba-enredo. Até que teve um momento, já formada, que comecei a me interessar pela história do samba em si. Matriculei-me na Escola Portátil de Música e fiz dois semestres de cavaco". Depois das aulas de música no Centro do Rio, a professora teve aulas com outras instrumentistas até chegar ao Caldo de Piranha do qual faz parte hoje.
Segundo uma das integrantes, Eloísa Lopes de Oliveira, 35, também professora, a intenção do Caldo é proporcionar um espaço seguro e de acolhimento feminino voltado para quem tem interesse no ritmo. "Acabou virando um movimento muito forte, agregando muita gente. Atravessamos a pandemia sem nos encontrarmos e, quando estava começando a ser possível um retorno, voltamos pensando nesse formato que queríamos e com o objetivo de organizar ciclos de estudos. Ao final dele, organizamos uma grande roda aberta para outras mulheres também".
Para Eloísa, a força está no conjunto formado por mulheres instrumentistas de outra geração do choro e do samba. Hoje em dia, as rodas serem conduzidas por vozes femininas é um avanço social, uma vez que eram ocupadas majoritariamente pelo público masculino. "É muito bonito porque a gente vê o quanto esse espaço é importante para aquelas que tocam seus instrumentos e muita das vezes não tem um lugar assim, de acolhimento, de troca. É algo potente. Essas tantas rodas de mulheres agora pela cidade tem uma história sensacional. Vem lá das artistas, cantoras, que estiveram à frente desses movimentos. O que vivemos hoje tem uma linha no tempo. Viva a democracia, viva a Tia Ciata!".
Uma das flautistas do grupo, Marina Sereno, 32 anos, declarou que a proposta é poder estudar e tocar em um ambiente livre de julgamento e competição. "Aquela tensão rola com frequência nas rodas formadas pela maioria masculina. Até pouco tempo atrás era só o que a gente encontrava por aí, homens tocando e dominando esse meio musical. Nosso objetivo é o estudo, mas também focamos no samba. O que eu gosto muito no nosso grupo é que ninguém é musicista profissional, todas trabalham com outras coisas. A roda tem essa função de encontro e de dedicação à música sem a pressão de ser algo impecável".
Em contato com o samba desde pequena por causa dos pais que faziam rodas com os amigos, Marina sentia-se acanhada mesmo tendo abertura para tocar. "Como a flauta é um instrumento melódico, quando dão lugar para a gente em alguma roda, quase sempre é esperando um solo, um lugar de destaque que é muito difícil de sustentar quando a gente não está segura ou quando estamos ainda aprendendo, principalmente no choro que as melodias são super complexas".
Por muitos anos, ela estudou sozinha e, por se sentir isolada, precisou perder o medo e tentar construir o prazer de tocar junto. "É fundamental a prática em conjunto, mas para isso é preciso que a gente se sinta à vontade, que exista um espaço em que a gente saiba que não tem problema errar, que pode experimentar, se arriscar em alguma coisa nova pra ver como fica. Também pode vibrar junto, comemorar quando fica bonito, elogiar, reconhecer a qualidade do trabalho. É outro tipo de parceria que rola nas rodas femininas".
Julia Lima, 31, mestre em cultura e territorialidades pela Universidade Federal Fluminense (UFF), fez a sua pesquisa sobre grupos de samba exclusivamente formados por mulheres. "Elas sempre tiveram grande participação na produção do samba e da cultura brasileira, sobretudo as mulheres negras. Figuras como a Tia Ciata, por exemplo, que são mostradas sempre em um aspecto específico, tiveram um significado muito mais amplo do que a gente pensa. Eram mulheres instrumentistas que sabiam tocar pandeiro e cavaquinho".

Júlia explicou que a participação feminina começou a ser apagada na construção de uma narrativa sobre o samba. "Os homens brancos começaram a escrever sobre o samba e alçar uma identidade nacional, uma arena pública, dominada pelos discursos deles. É muito importante lembrarmos que as mulheres sempre tiveram participação significativa neste mundo. Esses grupos femininos não surgem por capricho, mas por uma necessidade política".
Oficina de instrumentos gratuita
Para incentivar ainda mais o crescimento de grupos femininos do ritmo, uma oficina de instrumentos gratuita, do Movimento Mulheres Sambistas, foi criada para àquelas que têm interesse em aprender. O projeto, dedicado principalmente às mulheres periféricas eLGBTQIA+, funcionará a partir de março e é uma vertente do Movimento Mulheres Sambistas.
"A casa da Mulher Sambista que vamos executar esse ano é um braço do Movimento das Mulheres Sambistas, movimento sem fins lucrativos que nasceu em 2019 depois da inclusão do Dia da Mulher Sambista no Rio. Então, depois da primeira comemoração que fizemos, surgiu a necessidade das mulheres juntas, mobilizando-se em torno da necessidade do feminino no samba", disse a coordenadora do projeto, Patrícia Rodrigues, 37.
A primeira oficina, em 2019, teve 350 mulheres inscritas para aulas de percussão, sendo que só havia 50 vagas. "A gente viu a necessidade. Era só um dia de vivência e de lá para cá fomos fazendo esses workshops quando dava. Veio a pandemia e transformamos tudo para o online, o que conseguimos fazer. Durante esse processo de quarentena, fomos escrevendo projetos e dentre os que foram aprovados em 2022, foi a emenda parlamentar que proporcionou a formação continuada". A casa só conseguia fazer um dia de aula, uma imersão em pandeiro, canto ou outro instrumento, e não tinha o prosseguimento no desenvolvimento da mulher.
"A gente conseguiu uma emenda com a Talíria Petrone e agora vamos fazer oito turmas, do iniciante ao intermediário com pandeiro, cavaco e percussão de bloco leve e pesada. Vamos trabalhar por semestre como essas grandes instituições fazem, como a Villa Lobos, por exemplo. Temos algumas lacunas de mulheres no samba carioca. Sempre tem as mesmas pessoas nas rodas, as mesmas mulheres nos mesmos lugares, a nossa ideia é que tenha mais mulheres formadas e capacitadas", finalizou Patrícia.
A Casa da Mulher Sambista tem como principais motivações a capacitação, a visibilidade e o acolhimento de mulheres vinculadas ao samba, seja de forma profissional, como no caso de compositoras, musicistas e produtoras, ou de forma afetiva. A casa oferece palestras e rodas de conversa mediadas por profissionais qualificados.O movimento recebeu a Homenagem Carolina Maria de Jesus, em 2019, pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Além disso, também ganhou o Prêmio Dandara, em 2022.