Há cerca de 30 anos, Ricardo Andrade é motorneiro do bondinhoPedro Ivo / Agência O DIA

Rio - As ruas do bairro de Santa Teresa, no Centro do Rio, que dão acesso à Zona Norte e Zona Sul, contam histórias desde o século 17. Antigamente conhecido como Morro do Desterro, a região já foi palco de grandes reformas urbanas e refúgio para quem queria morar em um lugar mais bucólico, afastada do Centro da cidade. Hoje, com o fim da pandemia da covid-19, Santa Teresa voltou a todo vapor apostando no turismo, boêmia e o clássico bondinho, que já levou mais de 120 mil pessoas nos três primeiros meses deste ano. No entanto, moradores relatam problemas estruturais no bairro e pedem a volta do trajeto do bondinho Paula Mattos. 
De acordo com a Secretaria de Transportes do Governo do Estado do Rio, o bairro ficou tão em alta que o quantitativo transportado nos bondes de Santa Teresa nos três primeiros meses deste ano foi aproximadamente 60% maior que a marca atingida no mesmo período de 2022. No total, foram 121.564 viagens contra 76.745 no ano passado.
Há cerca de 30 anos, Ricardo Andrade, 57, é motorneiro do bonde de Santa Teresa. Morador de Bangu, Zona Oeste do Rio, ele conhece mais pessoas do bairro, localizado no Centro do Rio, com saídas para Zona Sul e Zona Norte, do que os próprios vizinhos. Ricardo não passa por ninguém sem dar um sorriso ou cumprimento; até recorre ao inglês para ajudar os turistas estrangeiros. Aos fins de semana, o passeio de bonde fica diferente: por ter menos moradores e mais visitantes, o motorneiro aproveita para dar uma aula de história, indo do reinado de Dom Pedro aos dias atuais. Nada passa batido pelo seu trilho.
Ricardo entrou no bondinho em 1994, quando prestou concurso para motorista. Com o cotidiano e os mesmos trajetos, ele ficou amigo dos moradores, que logo confiaram nele a função de olhar os filhos na saída do colégio, quando pegavam o bondinho. "Completei o quadro de motorneiros de Santa e de lá para cá foi só sucesso. Eu fiz parte ainda de um grupo que levava crianças para as escolas. As mães deixavam os filhos conosco e pegávamos eles no ramal de Paula Mattos, que está desativado. Até hoje algumas pessoas mais antigas se lembram disso. As crianças viraram adultas e algumas seguem pegando o bonde, assim criamos uma bela amizade".
Antigamente, a passagem do bonde custava R$ 0,60 para todo mundo, turista e morador. Atualmente, o valor foi a R$ 20 para quem não é de Santa Teresa — quem mora no bairro é isento desde que comprove o endereço. "O bonde foi crescendo e a gente interagia muito com o público internacional, doméstico, todo tipo. Sempre foi uma maravilha. Teve uma época que o último bonde subia sexta-feira à noite, então levávamos a galera que ia para um pagode ali em cima, e de manhã cedinho já estávamos ali funcionando de novo, vendo esse pessoal ir embora, por exemplo. Eram 18 bondes em operação. Foi uma fase muito boa, muito legal. Hoje em dia os antigos carros estão aposentados e agora trabalhamos com bondes novos", destacou.
Por ter muito tempo de trabalho, Ricardo conquistou o bairro com sua simpatia e carisma. Ele toma café na casa de seus amigos passageiros, e é convidado para casamentos e aniversários da região. "Temos essa relação próxima, falamos sobre filmes, cultura, arte. Então estou sempre trocando ideias, conversando e levamos uma vida de cotidiano mesmo, como se já nos conhecêssemos desde criança. Tem morador que fica chateado por causa do bonde estar cheio de turistas, outros gostam. Temos que saber lidar".
Hoje, ele quer se aposentar para conseguir um espaço nas salas de aula. Com uma trajetória que vai além dos trilhos de trem, antes de chegar aonde está hoje, ele já passou por hospitais como técnico de enfermagem, pelo Exército como paraquedista, motorista de BRT, entre outros. Em 2021, Ricardo se formou em história e o tema do seu TCC foi mobilidade urbana, por sua paixão pelo assunto. "Meu objetivo é que todos peguem o bonde de bom humor. Quero todos felizes. Muita gente não gosta de esperar, vivemos em um mundo onde há muita pressa. Estou observando inscrições para professor para quando eu me aposentar. Vou me dedicar a dar aulas".
Moradora há 20 anos de Santa Teresa, a pedagoga Mítsi Fernandes, 47, acredita que o aumento do fluxo de turistas na região prejudica a mobilidade de quem mora no bairro e precisa pegar o transporte. "Turistas no bonde é o que não falta. Muitas vezes nós, moradores, não conseguimos pegar o bonde por causa disso e no final de semana só piora, porque vem muito mais gente".
Para ela, o bondinho é um meio de transporte agradável e o percurso deveria se estender até o Silvestre, e é a favor também da volta do trajeto da Paula Mattos. "Ele também poderia voltar a ser até às 20h como antigamente, o que facilitaria muito para nós moradores a volta pra casa confortavelmente".
Reginaldo Araújo, 51, mora há dez anos no bairro e é a favor da movimentação de turistas para melhorar a economia, mas pontuou que, depois da pandemia, o número de roubos aumentou muito. "O bondinho é fundamental para Santa Teresa, inclusive para o turista que vem visitar, ver os pontos legais e museus. O bairro melhorou muito também com o policiamento, apesar de acontecer muitos ilícitos nas ruas principais depois da pandemia. Veio muito morador de rua aqui para cima, além de criminosos de outras comunidades que vêm para assaltar de moto, como tem acontecido bastante".
Para o presidente da Associação de Moradores de Santa Teresa (AMAST), Paulo Oscar Saad, há aspectos positivos e negativos no bairro atualmente. "Houve uma melhoria na ocupação das pessoas, ou seja, muita gente conseguiu formas de renda, de serviço, e isso gerou uma circulação maior de moradores. Então, aumentou o número de moradores que saíram de casa se comparado ao mesmo período ano passado, que ainda estávamos com a sombra da pandemia".

Saad pontuou que com a saída das pessoas de casa, mais gente, além de morador, passou a circular pela cidade e também por Santa Teresa. "A galera voltou a passear, a visitar outros lugares. Isso realmente condiz com o que a gente sente, percebe. Acredito que a expansão poderia ter sido maior. Hoje temos oito bondes circulando pelo bairro, e mais oito bondes que podem ser restaurados para aumentar a frota, no entanto, a Central fica só com cinco bondes circulando de 20 em 20 minutos. Se colocasse mais um, o tempo de espera diminuiria, caindo para 10 minutos, levando ainda mais gente".

Mesmo com o grande número de pessoas transitando pelo bairro, entre moradores e visitantes, ele pontuou que o ramal do bonde que vai do Largo do Guimarães para o Largo das Neves, por exemplo, poderia ter sido restaurado também, atendendo melhor quem mora na região. "Na verdade, um terço do bairro está sem bonde. Se esse ramal, o da Paula Mattos também, fosse restaurado, poderia expandir ainda mais, os moradores poderiam optar pelo bonde porque é isso que eles querem".

No entanto, nem tudo são flores. Ele ressaltou que é necessário atenção da prefeitura em relação às ruas e mobílias urbanas. "As praças de Santa Teresa estão caindo aos pedaços. Temos a Praça Odilo, que precisa de obras urgente, a do Curvelo também. Temos muitos problemas na estrutura das ruas e precisamos de uma manutenção nas calçadas, postes históricos, nos gradis, entre outros elementos. Isso tudo acaba levando desconforto às pessoas que transitam a pé".
Questionada, a Central Logística do governo informou que consta em seu planejamento a retomada da expansão do trajeto do bonde de Santa Teresa. 
Santa Teresa
O historiador Rodrigo Rainha, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Estácio de Sá, contou que a história de Santa Teresa começou no século 17. "Nesse período, só existiam quatro grandes morros no Centro do Rio que marcavam ocupação, porque embaixo era muito alagadiço. O bairro se compreendia entre o morro de Santo Antônio, que hoje tem o convento ali na Carioca, até um pouco mais para trás".
Santa Teresa, que já teve o nome também de Morro do Desterro, começou a ganhar forma e ser povoada a partir do século 18, segundo Rodrigo. "Esse bairro que conhecemos hoje, era totalmente diferente da época que o Rio começou a ser colonizado. Lá, primeiro foram parar os grupos eclesiásticos. As carmelitas ficavam ali em cima por ser uma área mais elevada da cidade. No século 18, em especial o 19, o Rio já era capital, então tinha muita gente vindo para cá, e a ocupação ali no Centro foi aumentando".
No século 19, durante uma epidemia de febre amarela, Rodrigo explicou que muitos médicos acreditavam que quanto mais longe da atmosfera marítima a pessoa ficava, melhor para não ficar doente. "Era como se o ar da área de porto tivesse poluído, ajudando a doença a se disseminar. Houve então uma fuga das famílias de classe média do Centro da cidade em direção às diversas faces do grande morro de Santa, que tem acesso pela Zona Sul, Zona Norte e Centro, ocupando-o".
Na segunda metade ainda deste período, já quase chegando ao século 20, o Morro de Santa Teresa começou a fazer parte do planejamento urbano. Os bondes começaram a surgir pela cidade do Rio, como em bairros do Jardim Botânico, Zona Sul, e Tijuca, Zona Norte. "Antes, era uma caixa puxada a cavalo, depois veio a figura do bonde. Em Santa Teresa, ele atendia principalmente os casarões e grandes senhores que estavam lá em cima, famílias importantes".
Após esse período, o bairro passa por um outro tipo de urbanização, de acordo com Rodrigo. Muitos se refugiavam lá para fugir do caos urbano, ou para ficar mais perto da natureza, garantindo um certo bucolismo para a sua rotina. "A população da região era altamente intelectualizada. Figuras como Manuel Bandeira, entre outras, passaram por lá, dando notoriedade ao local. Posteriormente, com esse boom, ele foi impactado pelas pressões do crescimento do Rio. As reformas que pressionaram a classe média, também fizeram com que a derrubada de cortiços e aberturas de ruas acontecessem".
É a partir de então que Santa Teresa passa a ter outros acessos além da Zona Sul e Centro. Caminhos para a Zona Norte foram abertos a partir da subida pelo Rio Comprido. "Nessa subida já existia a população quilombola na região do Fallet. Então começa a ter uma escarpa da subida como uma continuidade dessa ocupação quase irregular. Hoje, o bairro de Santa tem uma personalidade diversa, com face artística, boêmia, cultural, recheada de museus, parques, mas também há uma uma face relacionada a essas populações que ocuparam com casas mais simples, trabalhadores", concluiu Rodrigo.
Para ele, a tragédia do bonde fez a população perceber que não havia mais condições do carro continuar o mesmo da década de 60. "A pergunta era: vale a pena manter? Essas passagens eram importantes, pois o bonde ligava o Centro com os arcos, aqueduto do momento que D. Pedro quis abastecer a cidade. Havia essa coisa bucólica que dialogava com a nossa própria história. Durante a pandemia, muita gente duvidou que ia ver Santa Teresa se recuperando dos espaços, dinâmicas. Hoje temos um carro mais novo, um giro maior de turistas, que foi fazendo o bairro se recuperar".