Rio – Passadas três décadas de sua morte, o paisagista e arquiteto brasileiro Roberto Burle Marx (1904-1994) continua a inspirar trabalhos que mantêm seu espólio vivo e forte. E mais do que suas obras, o legado do artista passa pela relevância dos temas abordados e trabalhados por ele, caros ainda nos dias atuais. Com a proposta de dar luz a esse legado e ao acervo de Burle Marx, e os ressignificar, o Instituto Burle Marx e o Museu de Arte Moderna do Rio (MAM Rio) inauguraram, no último sábado (27), a mostra 'Lugar de estar: o legado Burle Marx', com propostas de novas leituras sobre o acervo documental do trabalho do artista e de seus colaboradores.
A exposição inédita, que fica em cartaz até o dia 26 de maio, discute temas contemporâneos levantados pelo multiartista a partir de 22 projetos pensados para espaços públicos, desenvolvidos para a cidade do Rio de Janeiro, mas fora do eixo Centro-Zona Sul. Ela reúne cerca de 100 itens, em uma expografia que remete aos 'lugares de estar' criados como espaços públicos pelo paisagista e seus colaboradores, com áreas de contemplação, encontro, experimentação ou, simplesmente, de estar.
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A ideia é discutir a questão dos espaços públicos, o direito à cidade, e o compromisso ético-estético no ato de fazer projetos de paisagens, como também trazer voz para o trabalho colaborativo de Burle Marx: "Ele desenvolveu mais de dois mil projetos e não os desenvolveu sozinho. Ele era um artista múltiplo, era pintor, era escultor, desenhista de joias, cozinhava, cantava, era o homem do renascimento no século 20. E, para nós, do instituto, interessava que essa exposição falasse dessa coletividade", afirma Isabela Ono, diretora-executiva do Instituto Burle Marx.
Para Isabela Ono, falar sobre projetos concebidos para outros territórios têm relevância do ponto de vista curatorial: "É importante refletir sobre esses espaços de acesso coletivo nas cidades, e pensar o que determinou as escolhas e execução a partir de determinados contextos históricos e localização. E como, neste processo de construção de cidades, alguns jardins continuam vivos, enquanto outros nem saíram do papel ou foram abandonados".
Além da exibição de obras de Burle Marx, o Instituto e o MAM convidaram os artistas João Modé, Luiz Zerbini, Maria Laet, Mario Lopes, Rosana Paulino e Yacunã Tuxá para produzirem trabalhos que se conectassem com essas temáticas levantadas pelo homenageado e ampliassem o diálogo sobre o acervo do instituto, composto por cerca de 150 mil itens.
Isabela Ono, junto com Beatriz Lemos e Pablo Lafuente, também curadores da exposição, reuniram o grupo pensando na importância de ter artistas de gerações, origens e práticas distintas. "É uma amostra dos diferentes caminhos que a obra de Burle Marx faz possíveis", diz Pablo, diretor artístico do MAM.
"Fez sentido convidar esses seis, pois eles queriam tocar em algum tema que o instituto e o MAM queriam provocar e ouvir, com uma escuta aberta. A ideia é fazer uma provocação. Como a exposição não dá conta de mostrar os 150 mil itens e toda a história do Burle Marx, nós damos uma amostra e também de como podem vir outras ações deste legado", acrescenta Isabela.
Assim, nasceu a obra Land, instalada no foyer (primeiro contato do visitante com a mostra), fruto de inspiração de Modé para celebrar a relação entre os espaços interno e externo feita por Burle Marx. A instalação reproduz uma pequena floresta dentro do museu, com folhas e plantas abraçando a escadaria que leva ao segundo andar, onde está abrigada a exposição. Ela foi situada no foyer, ambiente fechado por vidros, para dialogar com a área externa do edifício e propor uma associação entre arquitetura e plantas, convidando o público à interatividade.
"Quando o instituto pensou nesta exposição, fazia todo o sentido pensar em fazer no MAM. Primeiro, porque os jardins do Museu de Arte Moderna são projetos de Burle Marx, realizados na década de 50, um pouco anterior ao Parque do Flamengo. Então, o projeto do MAM como um todo, arquitetura e jardins, inaugura a área do Parque do Flamengo. Segundo, porque o museu está inserido no parque, então tem a ver com a discussão que o instituto quer levantar sobre a cidade, sobre bem viver e sobre a relação dos elementos naturais com os seres humanos", destaca Isabela Ono, diretora-executiva do Instituto Burle Marx.
Beatriz Lemos, curadora do Museu de Arte Moderna, expõe a alegria de o museu abrigar ‘Lugar de estar’: "Foi um momento feliz e oportuno quando o Instituto procurou o MAM para ser a sede da exposição, pois estamos nos últimos dois anos pensando história. A história do país, com uma exposição no ano passado sobre o bicentenário da independência, e a história do próprio museu, que completou 75 anos em 2023. Chegar em 2024 com essa exposição leva à continuidade de um discurso conceitual da própria instituição. Burle Marx é uma figura muito importante para o legado e a história do museu. O MAM é pensado também em sua área externa, os jardins fazem parte da construção. Então, estamos em uma grande obra de Burle Marx. Começar 2024 com uma exposição dele faz sentido com o que estamos trabalhando institucionalmente há dois anos", pontua.
Além disso, a escolha pelo MAM passa pelas atuais temáticas de discussão do museu, que também são assuntos que o Instituto tem se proposto a discutir, como a questão do que é um museu e como ele dialoga com a cidade, assim como as questões da emergência climática e da existência de lugares mais inclusivos, viventes e democráticos.
Um parque dentro do museu
Em mil metros quadrados de área expositiva, a narrativa da mostra se constrói a partir de projetos que pensavam cidades, estudos, croquis, desenhos, fotografias e recortes de jornal somados às obras dos artistas convidados.
O Parque do Flamengo é um referencial para pensar a ideia de construção do Rio de Janeiro e refletir sobre quem usufrui das áreas públicas. "A exposição fala do direito à cidade a partir também dessas escolhas de projetos executados e não executados, indicando o porquê disso, quais os critérios e os contextos dessas escolhas", afirma Beatriz Lemos.
Os espaços públicos são discutidos a partir dos seus usos como lugares de encontro, lazer e fruição estética, além da sua preservação como patrimônio. "A mostra reflete sobre o que esses espaços representam e como são ressignificados ao longo do tempo", analisa Beatriz.
O legado Burle Marx na botânica também é celebrado, com registros que documentam as viagens de pesquisa feitas pelo paisagista e sua equipe pelo Brasil, com o intuito de conhecer novas paisagens, valorizar biomas e coletar espécies para seus jardins.
Essas excursões contribuíram para a ciência ao promover a catalogação de mais de 50 espécies não registradas à época, e ao identificar plantas em risco de extinção
Em diálogo com esse tema, está a obra comissionada de Mario Lopes, artista e coreógrafo paulistano que, desde 2009, trabalha como articulador cultural com foco na promoção e circulação de obras e projetos que buscam transformações sociais. Para a exposição Lugar de estar, produziu sete vídeos com performances de dança, em colaboração com outros bailarinos, captadas em espaços concebidos por Burle Marx e seus colaboradores na cidade do Rio de Janeiro, como Largo da Carioca, Praia de Copacabana e Parque da Maré.
"O Mário é um artista que fala de corpo e território, como esses corpos circulam nas cidades e nos espaços para a sociedade projetados por Burle Marx", expõe Isabela.
A artista e ativista indígena Yacunã Tuxá, de Rodelas, sertão da Bahia, trabalha com a criação de figuras indígenas, principalmente mulheres, em diversos contextos de trabalho, localidade e relações, e recebeu o convite para pensar uma obra a partir do legado de Burle Marx e a paisagem construída do Parque do Flamengo. Em uma pintura com galhos e peças em cerâmica, a artista aborda os processos de enraizamento e semeadura, e recria seu bioma de origem, a caatinga brasileira, para refletir sobre os lugares de lazer que nos acolhem. "Ela tem uma questão muito subjetiva, profunda e delicada da questão do enraizar e do semear, que tem tudo a ver com a obra do Burle Marx. Então, não é uma leitura direta, mas sim uma conexão que o MAM e o Instituto Burle Marx quiseram trabalhar com a artista", afirma Isabela.
A obra de Yacunã faz uma ponte com as excursões realizadas nos biomas nacionais por Burle Marx e colaboradores, que tinham como objetivo estudar as paisagens naturais brasileiras, atentos às espécies vegetais nativas com potencial ornamental, que se tornariam elementos para a construção de novas paisagens através de seus projetos.
Os espaços públicos são discutidos a partir dos seus usos como lugares de encontro, lazer e fruição estética, além da sua preservação como patrimônio. "A mostra traz uma perspectiva física e simbólica desses espaços, e reflete sobre o que representam e como são ressignificados ao longo do tempo", analisa Beatriz.
O legado Burle Marx na botânica também é celebrado, com registros que documentam as viagens de pesquisa feitas pelo paisagista e sua equipe pelo Brasil, com o intuito de conhecer novas paisagens, valorizar biomas e coletar espécies para seus jardins. Essas excursões contribuíram para a ciência ao promover a catalogação de mais de 50 espécies não registradas à época, e ao identificar plantas em risco de extinção. Dialogam com esse inventário de espécies da artista visual Rosana Paulino, com obras de 2019, e do artista Luiz Zerbini, com uma nova série de monotipias, um processo híbrido, entre a pintura, o desenho e a gravura.
Os desenhos da série Senhoras das plantas, de Rosana, retratam corpos femininos entrelaçados com raízes e plantas. Para Beatriz, essas senhoras-plantas revelam a relação entre seres humanos e a vida vegetal, através da dimensão interespécie: "A presença da obra de Rosana nos ajuda a compor imagens em que os vínculos entre humanos e plantas não passam pelo crivo da hierarquia ou exploração, mas sim da troca".
Três obras da carioca Maria Laet abordam o encontro da artista com o jardim do MAM Rio. Um díptico de vídeos, uma instalação e fotografias dialogam com o Jardim de Pedras, partindo de composições geométricas e abstratas, semelhantes àquelas encontradas nos projetos paisagísticos de Burle Marx. Nos vídeos, Laet constrói uma conversa com as pedras e elásticos, explorando gestos manuais. Na instalação, as pequenas rochas surgem reposicionadas em folhas de papel e desenhos, sobre uma mesa. Por fim, o registro de uma ação realizada no jardim, em frente ao museu, em que a artista literalmente costura a terra para criar uma conversa poética.
Já Zerbini foi convidado para o diálogo com o legado a partir de seu trabalho com monotipias criadas com plantas e árvores. As gravuras e suas matrizes vegetais trazem detalhes, texturas, cores e a materialidade de espécies vegetais coletadas pelo próprio artista durante uma visita ao Sítio Burle Marx.
Por fim, um painel mostra o ativismo de Burle Marx acerca das questões ambientais e climáticas. "Nos anos 60, ele já falava sobre a crise climática. Era uma voz pública, engajada e crítica em uma época em que não se falava muito sobre o assunto", afirma Pablo Lafuente. Isabela Ono relembra o posicionamento de Burle Marx, inclusive registrado nos jornais da época e nas suas participações no Conselho Nacional de Cultura, principalmente entre os anos 1960 e 1970, em que enfatiza os danos do 'dito' progresso nacional da abertura das rodovias Rio-Santos e Transamazônica, em plena ditadura militar, já em tom de denúncia e alerta.
Legado digital
Essa é a terceira mostra promovida pelo Instituto com o intuito de reverberar o legado de Burle Marx. "Cada exposição que o instituto promove dá luz à importância do que é um acervo e que, apesar de histórico, não está congelado no passado. O acervo de Burle Marx tem muito diálogo com o presente e uma perspectiva de inspiração para o futuro. A nossa missão é mostrar isso", afirma Isabela.
E o acervo também é importante como patrimônio brasileiro: "É difícil manter e criar uma cultura de entendimento de que esse acervo é importante não apenas em termo de obra de arte, como também em termo de reflexão. Manter isso no Brasil é uma resistência, pois acaba que, no fim, não tem como se manter, pois é papel, se degrada e se perde. Estou com uma equipe enxuta, praticamente só de mulheres, e que trabalha herculeamente para manter esse acervo. É um trabalho delicado e demorado de catalogação, digitalização. O nosso desejo é colocar cada vez mais público".
Ainda em 2024, Isabela garante que o legado de Burle Marx estará ainda mais acessível a todos, com um banco de dados digital disponível no site do instituto: "Esse banco será alimentado ao longo de vida do instituto, para a população ter mais acesso à pesquisa. A ideia é o acervo estar em acesso público para a difusão e vida deste legado".
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