A peça ’Maria: Anatomia não é destino’ poderá ser vista no Teatro GonzaguinhaDivulgação Ricardo Sabbatini

Elas não se conhecem, são moradoras de bairros, municípios, cidades e até países diferentes. Mas o quê todas essas muitas mulheres têm em comum? São agredidas por seus maridos, companheiros, namorados, parceiros ou por homens que não se conformam com a separação e se sentem no direito de achar que a mulher é propriedade deles. Muitas não conseguem sobreviver a seus algozes e deixam filhos pequenos e familiares estarrecidos com tanta violência, principalmente praticada por quem ela dividia a vida de alguma forma.
Somente de janeiro a setembro deste ano, de acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), 77 mulheres foram vítimas de feminicídio e houve 289 tentativas de assassinato de mulheres em todo o Estado do Rio de Janeiro. Para que a situação seja, pelo menos amenizada, foi sancionada, em 9 de outubro de 2024, a Lei 14.994 que promove profundas mudanças no ordenamento jurídico brasileiro, com foco na proteção da mulher e no combate à violência de gênero. Na prática, a pena do criminoso aumenta de 30 para 40 anos. O advogado criminal Paulo Victor Lima discorre sobre o assunto:
"A Lei 14.994 fez alterações significativas não só no Código Penal, mas também na Lei de Execuções Penais e no Código de Processo Penal. Primeiro aumentou a pena do feminicídio, que antes era mínima de 20 anos, máxima de 30, e passa de 20 para 40. Esse aumento de 10 anos é um aumento significativo com reflexo na progressão do regime porque o cômputo para cálculo para o condenado poder ir para o semiaberto, depois para o aberto é calculado em cima do montante final da pena que ele foi condenado de modo que esse acréscimo de 10 anos vai poder permitir que ele passe mais tempo no regime fechado, que não tenha essa progressão de regime tão rápido por ter praticado o assassinato de uma mulher".

Prioridade no julgamento

O profissional explica ainda que toda essa evolução da progressão do regime será monitorada, o que hoje não acontece necessariamente. "Para os condenados desses crimes, haverá um monitoramento eletrônico, isso até para a proteção da mulher. E a outra é a prioridade de tramitação nos Tribunais do Júri. Esse processo de violência contra a mulher, no caso que gera resultado morte, ele não é julgado pela Vara de Violência Doméstica, é julgado pelo Tribunal do Júri, que tem uma competência constitucional. Anteriormente, o processo de feminicídio aguardava a pauta juntamente com outros processos de homicídio. Agora, com a alteração da Lei, estes processos de feminicídio deverão ser pautados primeiro dando uma resposta mais rápida para os crimes de homicídio ocorridos pela condição de a vítima ser mulher".
Secretária de Estado da Mulher do Rio de Janeiro, Heloisa Aguiar, aprova a alteração. "A recente mudança na Lei do Feminicídio é um passo significativo na luta pelo fim da violência contra meninas e mulheres e representa um fortalecimento do compromisso do Estado em proteger as mulheres. Essa alteração também busca assegurar que as vítimas tenham acesso a recursos e apoio adequados"

Ações para combater a violência contra a mulher

De acordo com Heloisa Aguiar, a Secretaria de Estado da Mulher tem realizado palestras e rodas de conversas em escolas nos 92 municípios do estado. "A pasta também tem promovido a integração entre diferentes setores, como saúde, educação e segurança pública, para criar um ambiente seguro e acolhedor para as mulheres. O fortalecimento das redes de apoio, a capacitação de profissionais e a promoção de espaços de diálogo são essenciais para que possamos avançar na prevenção da violência. Ações como o Capacit Mulher, voltado para a formação continuada das profissionais que atuam no atendimento às mulheres, bem como o Programa Antes que Aconteça e a implementação do Observatório do Feminicídio são políticas públicas que fomentam a integração e o contínuo aprimoramento da rede.

Manifesto cênico revela cicatrizes
O feminicídio tem sido uma preocupação de todos e é importante falar do assunto de várias formas. A peça Maria: anatomia não é destino, escrita pela atriz e psicanalista Glauce Valéria, de 51 anos, que será apresentada, gratuitamente, no dia 19 de novembro, às 19h30, no Teatro Gonzaguinha, na Praça Onze, é um poderoso manifesto cênico que revela as cicatrizes emocionais deixadas pela violência psicológica contra a mulher. Inspirada em histórias reais, a montagem reflete sobre a dor ancestral, que atravessa gerações e atinge mulheres de todas as idades, e visa chamar atenção para as consequências silenciosas dessa forma de agressão, mencionada no artigo 147-B do Código Penal.
A autora compartilha que cresceu em uma família disfuncional, marcada por histórias dolorosas, o que a fez amadurecer e ampliar sua percepção da importância da saúde mental. "Eu vivi na pele as consequências de conviver com mulheres mentalmente adoecidas. Foi um processo de aprendizado profundo e, hoje, entendo o quão essencial é para uma mulher cuidar de sua saúde mental para tomar as rédeas do próprio destino", relata.
Para Glauce, a alteração da lei vem para ajudar a mulher. "Entendo os amparos legais que envolvem a questão do feminicídio, como reparação por abusos transgeracionais. Certamente a Lei 14.994 é importantíssima para destacar uma atenção diferenciada e especial nos casos de feminicídio. A Lei é concreta, objetiva e deve estar na consciência de homens e mulheres como um limiar entre raízes profundas, sombrias e desconhecidas do inconsciente, isso pode ajudar a evitar as fatalidades que envolvem a violência doméstica familiar e o menosprezo à condição da mulher".

Em entrevista ao jornal O DIA, a delegada Fernanda Fernandes, da Delegacia de Atendimento a Mulher (DEAM) de Duque de Caxias, fala sobre a alteração da lei  e da importância do combate ao feminicídio.
O DIA: Foi sancionada a Lei n° 14.994, de 9 de outubro de 2024, que trouxe significativa alteração na forma como o feminicídio é tipificado. Na prática, a pena aumenta de 30 para 40 anos. A senhora acredita que, com essa mudança, o índice feminicídio irá cair?
Fernanda Fernandes: Toda medida ou alteração legislativa em prol do aumento da proteção, prevenção ou repressão à violência doméstica e familiar tem que ser aplaudida, até porque lança luz sobre o tema do enfrentamento à violência contra a mulher, trazendo à tona a discussão sobre a necessidade de políticas públicas preventivas, protetivas e repressivas, e debates sobre a necessidade de conscientização da população. É necessário o envolvimento de toda a sociedade no combate à violência contra a mulher.
O DIA: Temos leis como a Maria da Penha para proteger a mulher, mas, infelizmente, todos os dias mulheres são agredidas e assassinadas por seus maridos, companheiros ou ex parceiros inconformados com a separação. A que a sra atribui tanta violência?
Fernanda Fernandes: A violência contra a mulher tem origem histórico-cultural, portanto, é necessário que haja uma desconstrução dessa cultura machista e patriarcal, que ainda reina na nossa sociedade. Nesse sentido, é necessário que essa desconstrução ocorra no seio das famílias, escolas, igrejas, sendo imperioso o engajamento de toda a sociedade.

O DIA: O que a sociedade pode fazer para combater o feminicídio?
Fernanda Fernandes: As pesquisas demonstram que a maior parte das vítimas de feminicídio nunca registrou ocorrência das violências anteriormente sofridas, portanto, não estavam protegidas pelas medidas protetivas de urgência, previstas pela Lei Maria da Penha. Segundo o último Dossiê Mulher, no RJ, em 2022, apenas 15% das vítimas de feminicídio tinham medidas protetivas de urgência. Dados do Observatório da Mulher contra a Violência mostram que 8 em cada 10 mulheres não conhecem bem a Lei Maria da Penha, mas 95% disseram que conhecem a Delegacia da Mulher. É claro que para acessarem a delegacia da mulher e o sistema de Justiça, precisam se reconhecer como vítimas e, para tanto, conhecer os cinco tipos de violências previstas pela lei, a rede de proteção, os canais de denúncia e as medidas de prevenção, proteção e repressão trazidas pela Lei Maria da Penha.
O DIA: Mas como fazer essa mudança na prática?
Fernanda Fernandes: A sociedade precisa começar a desconstrução dessa cultura, repensar a educação e a construção da masculinidade, nas famílias, nas escolas, nas igrejas, para que essa violência não seja mais naturalizada. As crianças precisam ser educadas na cultura da igualdade. Os homens são criados para serem violentos, viris, poderosos, protetores, provedores e as mulheres são educadas para serem submissas, cuidadoras, belas, recatadas e do lar. Há um repúdio ao feminino. E é por isso que se fala para o menino "homem não chora", "isso é coisa de mulherzinha", demonstrando que os meninos não podem demonstrar sentimentos e têm que ser sempre fortes e violentos. Já das meninas se espera fragilidade, fraqueza e subserviência. E assim vamos naturalizando as violências, nessa relação desigual de poder, opressão e dominação masculina.

O DIA: Na sua opinião, como essa violência contra a mulher pode ser combatida?
Fernanda Fernandes: Precisamos de campanhas de conscientização, palestras, debates sobre o tema, não só nos espaços públicos como nos privados. O DGPAM tem um importante trabalho nesse sentido, já que as Deams, para além das atribuições repressivas, realizam também um importante trabalho de prevenção, com palestras, ações sociais, operações policiais, seminários e campanhas de conscientização, participando também da capacitação da rede de atendimento e proteção à mulher.