Rio – Em uma avenida onde ônibus são frequentemente sequestrados para servir como barricadas e invadidos para arrastões em pleno deslocamento, o relato dos motoristas desses coletivos é de uma rotina de terror. E o tiroteio que fechou os dois sentidos da via em questão, a Brasil, na tarde desta quarta-feira (12), por causa de uma operação das polícias Civil e Militar em comunidades do Complexo de Israel, não os deixam mentir.
Usuários da Avenida Brasil precisaram se esconder atrás dos veículos durante o tiroteio desta quarta (12)Reprodução
O DIA conversou com dois desses profissionais – identificados na reportagem por nomes fictícios por questões de segurança – que, felizmente, não viveram os momentos de pânico durante o confronto na altura de Cordovil – um dos pontos mais críticos dos 58 km de extensão da via – onde o traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, o 'Peixão', estaria planejando uma invasão à favela vizinha do Quitungo. Um por estar desempregado atualmente, e o outro, devido a uma pane no veículo que o fez regressar à garagem mais cedo.
Depoimentos sobre momentos de medo não são raros. Desde arma apontada para a cabeça até intimidações por parte de quem acessa os coletivos se dizendo parente de criminoso. Os tiroteios, claro, também estão na lista.
"Estava na altura de Coelho Neto, e os tiros começaram. Tive que largar o carro, descer e deitar no asfalto quente para me esconder atrás do pneu dianteiro, que é o lugar mais seguro. A carroceria é igual a papel: uma bala atravessa fácil. Numa situação assim, pedimos a Deus para passar logo aquilo e trememos quando passamos pelo mesmo lugar no dia seguinte", disse Walter, motorista de ônibus.
César acrescenta citando os sequestros de coletivos, outra ação recorrente de bandidos na Avenida Brasil, por onde passam cerca de 250 mil veículos diariamente: "O sentimento é de total insegurança. Acontecem bloqueios, barricadas. Sequestram os ônibus e mandam colocar no meio da via. Incendeiam os coletivos gerando pânico e constrangimento para a população".
Arma na cabeça
Dentre as experiências indignas que os dois motoristas têm em comum na avenida – que corta 27 bairros da cidade, da Zona Portuária à Oeste – estão ter o cano de uma arma a centímetros de distância. "Tive arma apontada para a minha cabeça em 2022. A todo momento, eles aterrorizam. Ameaçam matar; mandam desligar a luz para assaltar; agridem passageiros por causa da demora. Ficamos muito inseguros. A cada ponto, não sabemos quem está adentrando o coletivo", desabafa César, que tem cinco anos e meio de profissão.
Walter, que tem 37 anos como rodoviário, sendo cinco deles circulando na Avenida Brasil, narra um momento de apreensão semelhante vivido na via: "Atualmente, por causa do vale-transporte, não fica muito dinheiro no caixa. Então, muitas vezes, nem mexem. Mas um deles chegou por trás, apontou a arma para a minha cabeça e disse para eu ir devagar e só parar quando ele mandasse. Na Vila do João, eles desceram com os pertences dos passageiros. E temos que fazer o que querem, senão nem entramos no ônibus no dia seguinte. É aterrorizante como vivemos hoje".
Ele compartilha também que teve a saúde agravada durante o período em que dirigiu pela avenida: “A diabetes é de três anos para cá, por uma questão emocional que foi evoluindo. A gente fica nesse sufoco, não consegue médico, e a saúde vai para o espaço. E a hipertensão, eu já tinha, mas piorou. A gente se assusta no trabalho, e a pressão vai lá em cima. Só falta ter um derrame”.
Intimidações
O trabalhador diz ainda que a violência sofrida por motoristas de ônibus na Avenida Brasil vai além de tiroteios e sequestros que a população vê quase todos os dias no noticiário.
"O psicológico também fica abalado quando entram moradores de favelas e parentes de bandidos. Tem gente que diz que é mãe do fulano, irmão do beltrano para nos intimidar. Nos sentimos pressionados, pois não sabemos quem é quem. Nos intimidam, dizendo que se não obedecermos, sofreremos as consequências", afirma.
O motorista complementa: “O pessoal vai para a praia e quebra a porta do ônibus. Fica todo mundo pendurado, isso quando não sobem para o teto. Na volta, descem na favela, e você vai falar o quê? Nem a polícia resolve. A gente fica refém”.
Críticas às empresas
Diante da convivência contínua com o perigo, um acompanhamento psicológico pode fazer significativa diferença para o profissional. Mas nem sempre as empresas disponibilizam tal serviço, garante Walter: “A maioria não tem psicólogo. Só para nos impedir de trabalhar, apontando alguma irregularidade. Mas para um suporte emocional, não. O sindicato é que tem ajudado, com psicólogo, médico”.
Já César defende as empresas: "Elas dependem do poder público. A expectativa de melhora é neles [governantes]. Eles têm que atuar com mais firmeza no Rio, que está entregue a esses traficantes".
Sobre apoio psicológico, ele assegura que recebe atendimento quando necessário: “Após esses episódios [de violência], ficamos um mês, duas semanas com aquilo na mente. Você não consegue dormir e precisa de ajuda psicológica. Tem que ir ao RH e solicitar ajuda da psicóloga, pois dão o auxílio quando solicitado”.
A reportagem de O DIA procurou o Rio Ônibus, sindicato das empresas de ônibus municipais, que respondeu por meio de nota. Apenas em 2025, 77 linhas tiveram itinerários desviados em decorrência de tiroteios durante operações policiais, enquanto 13 ônibus foram sequestrados e utilizados como barricadas – além de outros dois que acabaram incendiados criminalmente.
O sindicato também destaca que, além do prejuízo financeiro, há impactos "na vida dos cariocas, dos rodoviários, e na mobilidade urbana da cidade". A nota acaba com o seguinte trecho: "É evidente a necessidade de intervenção das autoridades de segurança pública urgentemente.
Paixão pelo ofício
Apesar de tamanha proximidade com situações de risco, entretanto, os condutores descartam abandonar o ofício. Walter – que decidiu ser rodoviário depois de crescer vendo o pai no comando de um ônibus – busca um retorno ao mercado de trabalho, sem esconder que tem preferência por onde transitar: “Não dá para parar. Mas gostaria de sair da Brasil. Todo lugar é complicado, mas perto do Centro, os casos diminuem. Nas zonas Norte e Oeste é que está mais difícil”.
Assim como Walter, César também herdou do pai o gosto pelo trabalho: “Cresci vendo meu pai exercer a profissão. Vem de criança. Não estamos ali só por estar. Foi a realização do meu sonho. Não só na Avenida Brasil, mas por todas as rotas que faço, vou com medo. Mas o amor à profissão fala mais alto”.
Além do nobre sentimento pela ocupação, César nutre um ainda maior pela família, para quem, assim como qualquer profissional, deseja voltar após um duro – e angustiante – dia de trabalho: “Meus filhos são muito pequenos, então não entendem muito. Mas sempre quero ir trabalhar e na volta ter pessoas me esperando para receber o aconchego familiar”.
*Os entrevistados foram citados com nomes fictícios por questões de segurança
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