Quem disse que a gente não é feito para voar? Não precisa ostentar as asas para se sentir alado. A mágica é, justamente, saber que elas são internasArte: Kiko

Confesso que quando recebi o convite para cobrir o Chocolat Bahia, em Ilhéus, um friozinho tomou conta não só da minha barriga como da minha alma. Viajar a trabalho - e sozinha - é algo que já fiz várias vezes, mas naquele momento não havia nenhum planejamento no meu horizonte em relação a isso. É curioso e mágico como algumas experiências prévias não tiram o ineditismo de uma nova vivência. Que bom que seja assim! Banalizar ou fingir costume sobre algo que sempre almejamos é perder um pouco o viço da vida.
Assim, fiz minhas malas, comprei um punhado de remédios por precaução - para estômago, garganta inflamada, dor de cabeça - , além de repelente, filtro solar e afins. É curioso como a gente envelhece e se torna mais prevenido em algumas situações. É a idade que nos dá certa cautela e nos tira o ímpeto de fazer tudo sem pensar muito nas consequências.
Posso dizer que a minha sensação se modificou assim que pisei no Aeroporto Santos Dummont. Localizei o setor da companhia aérea, fiz o check-in e despachei a mala. Como havia chegado cedo, andei um pouco pelo saguão com a mochila com laptop nas costas e uma outra bolsa menor a tiracolo. Eu me reconheci ali, como a repórter que fui, ainda sou e que me trouxe até o presente. Já no segundo andar, olhei para o chão: o aviso do setor de embarque seguido por pegadas me lembrou que já fiz trajetos parecidos. Esse vaivém de aeroporto ou rodoviária nos traz a dimensão de como o mundo é imenso e cheio de universos. E, sim, dá para traçar os próprios passos na vida.
Já na área de embarque, prestei mais atenção a alguns detalhes. Essa ação de conferir o voo no painel e encontrar o portão para seguir rumo a outro estado, sozinha, pode ser muito corriqueira hoje. Mas uma mulher desbravando o seu próprio caminho já foi visto com algo estranho.
Curiosamente, eu já fui para bem longe de casa. Em milhas, a maior distância que percorri foi para China, passando ainda pelo aeroporto de Dubai. Em alma e sentimento, não precisei de passaporte nem passagem para ir mais longe e, ao mesmo tempo, para mais perto de mim mesma.
Quando o avião começou a decolar, fiquei admirando a paisagem pela janela. Ao meu lado, uma americana exclamava a beleza do Rio de Janeiro que ia ficando para trás. Por alguns instantes, fiquei na dúvida se usava o meu inglês enferrujado ou não. E usei! Era o único que eu tinha para me comunicar com ela, que comentou ter vindo da Califórnia para passear com uma amiga.
Assim como eu, elas iriam descer no Aeroporto de Confins, em Belo Horizonte, e de lá seguiriam para Ilhéus. Depois, ela iria de carro para Itacaré. Falei que a Califórnia me remete às duplas de vôlei de praia e ela me contou ter ficado encantada com o futevôlei e o frescobol em Copacabana, onde ficou hospedada no Rio. Ainda me falou dos filhos e do marido, comprovando que temos várias facetas na vida e apenas uma não pode nos resumir.
Demos até logo e descemos em Confins até descobrirmos que também estávamos sentadas lado a lado no voo de Belo Horizonte para Ilhéus. Ali do céu, admirando as nuvens, eu pensei em duas amigas que voam alto na vida acadêmica e com quem compartilhei uma foto antes da primeira decolagem, ainda no Rio. A gente se enche de orgulho uma da outra. E isso me faz lembrar de uma reflexão que escrevi em 2020: Quem disse que a gente não é feito para voar? Não precisa ostentar as asas para se sentir alado. A mágica é, justamente, saber que elas são internas.