Talvez seja isso que tenha me encantado tanto naquele momento: a emoção dos outros dois chefs — Janaína, nascida e criada no Brás, em São Paulo, e Flávio, paraense de Belém — diante de outro chefArte: Kiko

Do banco de madeira onde eu estava sentada no quintal de casa do sítio Cacau Xingu, em Brasil Novo, no Pará, consegui reparar na emoção dos chefs Janaina Torres e Flávio Ámoeddo. As lágrimas adornavam a fisionomia dos dois, que chegaram a passar as mãos nos olhos na tentativa de enxugar o choro. Juntos, fazíamos parte de um grupo de cerca de 20 pessoas que assistia à apresentação do almoço daquele dia, produzido pelo chef paraense Léo Modesto. Aliás, havíamos saído cedo de Altamira, município vizinho, onde estávamos hospedados para o Chocolat Xingu, festival que tem o cacau como protagonista.

A emoção transbordou justamente quando Léo recordou parte de sua vida e se lembrou especialmente de um dia em que precisava alimentar seus cinco irmãos mais novos no município de Curuçá. "Não tinha a proteína, só a vinagreira no quintal. A minha mãe tinha ido pescar. Naquele dia, a gente estava só com o café com farinha. Fui no quintal, peguei vinagreira, chicória, alfavaca, temperei aquele caldo, coloquei urucum e farinha. Fiz um pirão escaldado para cada um. Dei para eles comerem e fui para a lateral da casa para chorar. Eles diziam que estava muito gostoso. Mas eu estava enganando eles", contou Léo, enquanto o choro nascia do seu olhar.

Léo lembrou que, quando os irmãos lhe perguntaram o que tinha para comer, ele olhou para o prato e disse: "Tem pirarucu". "Eu nunca tinha visto pirarucu, era uma lenda para a gente. Mas eu não poderia dizer que era vinagreira porque eles não iriam comer. Mas pirarucu, sim. Senti como se estivesse enganando os meus irmãos. Depois, por várias vezes, eu pensei: 'Será que eu estou sendo uma fraude na cozinha?'. Porque as pessoas desdenham".

Não posso opinar tecnicamente sobre gastronomia. Inclusive, confesso que me falta a sensibilidade de paladar que distingue várias nuances de sabores. Mas sei o que mexe com os meus sentidos. Assim, fiquei pensando que não pode estar errado aquele que busca se nutrir de imaginação para aguentar a dureza da vida. Quem carrega sua essência com orgulho não frauda as suas origens. E Léo ostenta de onde veio no menu e também na pele — está tatuado no antebraço direito as palavras 'Amazônica Atlântica'.

Léo, então, agradeceu a presença de todos, especialmente de Janaina Torres, eleita a melhor chef do mundo em 2024 pela aclamada lista 'The World's 50 Best Restaurants', premiação feita pela revista britânica 'Restaurant'. "Quando olho para uma mulher, eu me lembro da minha mãe. Cozinhar é esse ato de mostrar a nossa verdade", completou Léo. 

A proposta de Léo, inclusive, é mostrar o "peixe como elo entre rio e floresta e as técnicas tradicionais de moqueio e defumação que guardam o tempo da cozinha amazônica". Fiquei pensativa quando ele contou que o papel alumínio tenta fazer a função de uma folha de bananeira, por exemplo, no momento de assar algum alimento. Imaginei que muitas das respostas já estão na natureza, mas o homem teima em não ouvi-las. Como sobremesa, Léo preparou um beiju de macaxeira com a massa da banana "de vez", bem madura, com calda de chocolate 70% e licor de mel de cacau. Por cima, ralou um pouco de cumaru, fruto conhecido como a baunilha brasileira. Ao provar a iguaria, Janaina não se conteve: "Léo, isso é um beijo na boca!". Amante da fantasia e do mundo lúdico, eu me encantei pela metáfora criada por ela, que conferiu à sobremesa a mesma magia de um beijo capaz de entrelaçar almas.

Talvez seja isso que tenha me encantado tanto naquele momento: a emoção dos outros dois chefs — Janaina, nascida e criada no Brás, em São Paulo, e Flávio, paraense de Belém — diante de outro chef. O ambiente luxuosamente simples, com a recepção de Jiovana Lunelli e João Araújo, também me cativou e me lembrou muito o modo como fui criada. Havia uma mesa para o almoço, mas sem lugares para todo mundo. Mas isso não foi problema. Havia os bancos de madeiras, uma espreguiçadeira e cadeira de praia, onde nos sentamos para a saborear a refeição. Até hoje, quando a minha família está toda reunida na área de casa é assim: a gente se espreme na mesa, pega cadeiras extras e entende que o verdadeiro luxo é o afeto que temos um pelo outro.