"Eu não preciso do tempo, porque sou eterno.
Necessito, apenas, os mínimos espaços que demoram entre mim e seus braços."
Leão de Formosa, poema Morada
K
Kakay
A fragmentação das relações e a banalização das emoções são o que de pior poderia restar desta estranha divisão que domina o país. A hipótese de separar pessoas tão próximas nunca esteve numa mesa, nem imaginária, como sendo a opção real durante a convivência diária quase forçada no decorrer do confinamento.
A realidade pode ser bizarra quando se constata que chega um momento em que há escolhas e definições a serem tomadas. As relações que se sustentavam com carinhos esparsos e sem profundidade, como que automáticas, não resistem mais a esse momento. Todos estão esgotados. Não que a tormenta tenha se dissipado, mas é preciso ter certa resolução e altivez.
A crise sanitária e o isolamento, quase um enclausuramento, estão cobrando agora uma outra conta: a relação entre as pessoas. A insustentável dureza de ser. Acompanho, com carinho, relacionamentos em franco desmoronamento e muitas tristezas. Certa obviedade no ar. Conexões antigas que deveriam mesmo ser resetadas. A coragem que brotou da mesmice diária e, de certa forma, foi libertária. Já era hora, quase tarde.
Mas o que a crise não diz — já que só se ressalta a dor, que vira poesia e samba — são os amores que se superam. Que se descobrem e se fortalecem. Os detalhes que foram preservados, os mimos acalentados e os desejos reciclados. Um certo companheirismo descoberto para o enfrentamento da barbárie juntos.
E o silêncio. A enorme cumplicidade no silêncio a dois. A solidão dividida com calma e um envolvente amor. A descoberta da hora do toque e do respeito à distância, ainda que só imaginada. O nada se materializando. A desnecessidade de explicar. A cumplicidade na presença e na ausência.
A vida, enfim. Quando quiseram nos vencer pelo cansaço, isso de alguma maneira nos uniu. E o desejo ocupando o seu espaço com a volúpia natural, ora avassaladora, ora leve e profunda. Já era hora de deixar o amor fluir.
A resistência ao fascismo, de certa maneira, nos embruteceu. E, se nós cedermos a isso, teremos perdido. A única forma de vencermos a barbárie é assumindo o amor, revelando o respeito e nos deixando todos sermos bobos e leves. Quem no meio do caos se permitiu ser feliz está apto a salvar o mundo. Resta seguir tentando.
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