Colunista Rafael NogueiraReprodução


Conceito hoje inquestionável, intocável e inabalável, a democracia no Brasil parece mais sonho do que realidade. Nunca tivemos o povo canalizando sua vontade por meio de instituições por ele avalizadas. Cinco das sete constituições brasileiras atribuíram às Forças Armadas o papel de guardiãs da ordem interna, além da defesa externa. As outras duas constituições pertenceram, respectivamente, a uma monarquia e a uma ditadura. Resta a pergunta: precisamos sempre de tutela?
A realidade contemporânea nos coloca um paradoxo: vivemos sob a sombra de uma tutela institucional que limita nossa autonomia democrática.
Historicamente, as Forças Armadas brasileiras têm desempenhado papel ambíguo. A Constituição de 1891 estabelecia que as Forças Armadas defendiam a pátria e mantinham a lei no interior, obedecendo "dentro dos limites da lei". Isso deu margem a rebeliões nos anos 1920 e à Revolução de 1930. As Constituições de 1934, 1946 e 1967 reforçaram o papel das Forças Armadas na preservação da ordem, com a última ocorrendo durante um regime militar.
Em 1988, a Constituição manteve essa função no art. 142, permitindo a atuação das Forças Armadas a pedido dos poderes constitucionais. Recentemente, o STF negou-lhes o papel de poder moderador, gerando um vácuo e uma disputa velada por essa função.
Já o Supremo Tribunal Federal (STF) tem se posicionado como um poder moderador de fato, apesar de a Constituição de 1988 não prever tal função. Um ministro do STF afirmou certa vez: “nós já temos um semipresidencialismo com um controle de poder moderador, que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal.” Essa declaração ilustra o papel expansivo da Suprema Corte, que decide o que é fake news, monitora influenciadores e até prende indivíduos sob pretextos os mais controversos (a prisão de Filipe Martins é o maior exemplo).
Há aqueles que clamam por intervenções, ecoando essa tendência da nossa história republicana de acreditar que isso possa resolver os problemas do país. No entanto, essas posições revelam um desejo por soluções que contrariam os princípios democráticos e o intuito de resolver as coisas por meio do diálogo e da institucionalidade.
Chegamos, assim, a uma situação peculiar: a democracia brasileira está sob uma tutela velada. O STF, ao assumir funções de moderação que não lhe são atribuídas explicitamente, compete com as Forças Armadas, que historicamente exerceram esse papel. O cenário, tão apenas por isso, já fica sujeito a incertezas institucionais e coloca em xeque a autonomia dos processos democráticos.
Fala-se que tudo se resolve com instituições robustas, mas como robustecê-las com tanta intervenção arbitrária? Uma democracia de verdade exige mais do que a simples existência de instituições robustas. Requer uma sociedade civil ativa, consciente de seus direitos e deveres, e comprometida com as liberdades essenciais, entre as quais a de expressão.
Muitas vezes vistas como problemáticas, as redes sociais são na verdade parte da solução. Elas permitem a livre circulação de ideias e o debate público. Ou a liberdade de expressão é tenazmente defendida, ou nunca combateremos mentiras com verdades e nunca substituiremos a violência por ética e legalidade.
É um bom momento para falarmos de educação cívica, de uma nova cultura política, incentivar a maior participação de todos para o amadurecimento da democracia, para a garantia da liberdade individual, do Estado de Direito e da responsabilidade cívica.
Acredito que há dois caminhos para superarmos essa fase de democracia tutelada, firmando novo compromisso com a liberdade e a legalidade: ou encaramos nossa realidade política sem tutela alguma, buscando fortalecer o grande diálogo nacional com uma saudável competição no sentido de desmascarar mentiras, evitar agressões e promover debates, ainda que acalorados, mas tendentes a soluções; ou voltamos aos debates constitucionais e escolhemos nosso poder moderador, de fato e de jure, agora, aparecendo no texto constitucional com todas as letras. Não vejo outra alternativa.