Silvia Souza (C), segura os 2 documentos retificados da filha Amanda, ao lado de Marisa Chaves (E) e Stefani Brasil (D) Divulgação
Família consegue retificar atestado de óbito de trans assassinada em SG
Após determinação da Justiça, familiares obtiveram a requalificação pós-morte da cantora e passista ‘trans’ Amanda Soares, que batizará uma lei na Alerj
Após 45 dias de espera, a família da mulher ‘trans’ Amanda de Souza Soares obteve, enfim, o atestado de óbito com o nome retificado da passista. Amanda foi assassinada, brutalmente, no dia 1 de fevereiro, no bairro Jardim República, em São Gonçalo. A cantora havia sido sepultada com registro civil masculino, pois, na ocasião, em cumprimento a uma exigência legal, o cartório se recusou a emitir o documento com o nome social da ‘trans’.
Em meio à dor imputada pelo luto e os constrangimentos decorrentes da dificuldade na emissão de documentos, familiares acionaram o sistema de garantias de direitos. E, no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, em ato simbólico, o juiz André de Souza Brito prolatou a sentença, que possibilitou a averbação da retificação do registro de nascimento, dando, assim, o direito da mudança do nome no atestado de óbito da Amanda.
Os trâmites na Justiça foram articulados pelo corpo jurídico do Centro de Cidadania LGBTI da Metropolitana I (Niterói), pelo defensor público Hélder Moreira, coordenador do Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis) e pela gestora do Movimento de Mulheres em São Gonçalo (MMSG), Marisa Chaves, que recebeu, na sede da entidade, na terça-feira (19), a mãe da Amanda, Silvia de Souza, e a mulher trans Stefani Brasil, 53, ativista e integrante do Centro de Referência LGBTI+/SG.
Amanda, agora, é símbolo de uma luta’
Emocionada, Silvia de Souza, de 52 anos, ressaltou que, mesmo diante das dificuldades, a perseverança e o apoio da família foram fundamentais para fechar esse ciclo. “Esse não é um documento que comprova a mudança de nome de alguém que morreu. Para nós, é o atestado de uma ‘vida’, pois honra a memória da minha filha, que lutou, contra a discriminação e o preconceito, para ser o que sempre quis ser: uma mulher. Portanto, esse documento refere-se à Amanda, mas representa todas ‘trans’, que podem, e devem ser quem são, ‘vivas ou mortas’. Amanda, agora, é símbolo de uma luta. Só conseguimos esses documentos pela perseverança e o apoio de familiares e amigos”, disse, a dona de casa.
Para a irmã da passista, a auxiliar administrativa Rhayanny de Souza, 30 anos, os documentos representam a sensação do dever cumprido. “Desde a notícia da morte, passando pelo constrangimento do sepultamento, vivemos uma mistura de luto e busca por justiça, tanto pela condenação do acusado do crime, que está preso, aguardando julgamento, como também pela requalificação pós-morte da Amanda. Ela lutou para ser mulher e foi assassinada, na melhor fase da vida, porque era uma ‘trans’ bem resolvida e feliz. Claro, nada a trará de volta, fisicamente. Mas, para a família, é um alento, uma sensação do dever cumprido”, ressalta Rhayanny.
Juiz enalteceu a família por perseverar na busca pelo registro civil
Ao ser informado sobre a emissão e posse dos documentos, o juiz André Brito voltou a enaltecer a luta da família em perseverar na busca por justiça, mesmo após o cruel assassinato da passista. “Fizemos uma pequena parte e estamos felizes pela família”. Anteriormente, o magistrado havia reiterado que, o apoio e reconhecimento, em vida, à transição de gênero da Amanda é um exemplo a ser seguido. “A senhora não tem ideia da grandeza do seu gesto. Como mãe, apoiou a sua filha em vida, dando a chance de ela vencer preconceitos e discriminações. E, após a morte, lutou pelo reconhecimento do registro civil”, parabenizou o juiz.
‘Precisamos de mais famílias, assim; que aceitem e lutem pela identidade de gênero seus filhos’
A ativista ‘trans’ Stefani Brasil, de 53 anos, celebrou a retificação pós-morte da Amanda Soares e se emocionou com o depoimento da mãe da passista, que apoiou sua filha desde a transição de gênero. A ativista, no entanto, lamentou que, no Brasil, diversas crianças, por vezes com idade entre 10 a 14 anos, tenham que abandonar suas casas, expulsas pelas próprias famílias, ao assumirem suas identidades de gênero.
“É lamentável, ainda vermos crianças, adolescentes e jovens que, após assumirem suas identidades de gênero, muito novos, precisam lutar contra o preconceito dentro de casa, em ruas e escolas. São expulsos de suas residências e se arriscam nas ruas. Fico feliz quando vejo mães e pais que apoiam seus filhos. Precisamos de mais famílias, assim; que aceitem e lutem pela identidade de gênero dos seus filhos”, disse, emocionada, Stefani, em menção à mãe da Amanda Soares.
“A Amanda era muito querida, alegre, espontânea. Tinha um futuro brilhante, mas, infelizmente, teve a vida ceifada após crime de ódio. Ela foi vítima de transfobia. Contudo, apesar da saudade, deixará um legado de luta à causa LGBTI+ e entra para história como o primeiro caso de retificação pós-morte registrada na cidade”, afirma Stefani, que, atualmente, encaminha, em média, 15 casos de retificação, por mês, em São Gonçalo.
Projeto de lei será batizado com o nome da ‘Amanda Soares’
Amanda de Souza Soares está prestes a se tornar um símbolo na luta pelos direitos dos ‘transexuais’ e no combate aos ‘transfeminicídios’ no Brasil. Após articulação do Movimento de Mulheres em São Gonçalo (MMSG), Amanda será homenageada e dará nome ao repaginado Projeto de lei 3357/20, de autoria do deputado estadual Carlos Minc, que ampliará as garantias de direitos à população ‘trans’. O projeto está em processo final de inclusão de emendas e, em breve, será levado à aprovação na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
“O caso da Amanda, em todo seu contexto, tanto em relação à crueldade do crime, motivado pela sua identidade de gênero, quanto às questões sobre os registros civis, merecem atenção das autoridades e ações preventivas. Daremos apoio à família e, como integrantes da comissão do ‘Cumpra-se’, vamos trabalhar para o cumprimento das leis. A ideia é usarmos esse projeto de lei, que já existe, ampliar o debate sobre as garantias legais à população ‘trans’, e levarmos para aprovação. Vamos batizar essa nova proposta de Lei Amanda Soares”, ressaltou o deputado.
Brasil registrou 145 mortes de trans em 2023
De acordo com relatório anual da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) o número de pessoas trans assassinadas no país cresceu em 2023. No período foram registrados 145 casos. Já em 2022, ocorreram 131 assassinatos. Segundo a pesquisa, a maioria das vítimas é mulher trans ou travesti. Elas representam 94% do total, sendo a maioria preta ou parda (72%). A idade média das vítimas é de 30 anos, e 54% delas viviam da prostituição. Cerca de 60% dos casos, o agressor é conhecido da vítima. O relatório da Antra também mostra que a idade mínima das vítimas vem caindo ano a ano. Em 2023, uma das delas tinha 13 anos.
‘Vamos lutar para que casos de transfeminicídios não fiquem impunes’
Em alusão ao bárbaro assassinato da Amanda, morta a golpes de faca por um homem conhecido e com quem se relacionava, a gestora do MMSG, Marisa Chaves, enfatizou a urgência de um debate público com a finalidade de arbitrar ou criar novas regras, em âmbito federal, para os ‘transfeminicídios’, categoria que aglutina transfobia e o feminícidio, sendo, este último, definido, no código penal, como crime hediondo.
“Já iniciamos um diálogo com algumas autoridades sobre a possibilidade de o ‘transfeminicídio’ ser tipificado com a mesma dosimetria do feminicídio. A Lei nº 13.104/2015 torna o feminicídio um homicídio qualificado e o coloca na lista de crimes hediondos, com penas mais altas, de 12 a 30 anos. É considerado feminicídio quando o assassinato envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima. Como a morte da Amanda, a maioria dos assassinatos de ‘trans’ no Brasil segue essa mesma lógica. Portanto, assim como os feminicídios, vamos lutar para que casos de transfeminicídios não fiquem impunes”, ressalta Marisa, gestora do Projeto Neaca Tecendo Redes, que, com apoio da Petrobras, atende vítimas de violências domésticas e de gênero, em São Gonçalo, Itaboraí e Duque de Caxias.
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