Com a fotografia da filha, Silvia, mãe da Amanda, foi atendida pelo Movimento de Mulheres em São Gonçalo Hítalo Chaves / Ascom Tecendo Redes
'Morreu Amanda, sepultaram Yago'
Família de mulher trans assassinada em São Gonçalo reivindica retificação do nome em atestado de óbito e reacende debate sobre violências de gênero e desaparecimentos' institucionais
A família da mulher trans Amanda de Souza Soares, de 23 anos, assassinada pelo suposto namorado há cerca de um mês, revindica das autoridades competentes a retificação pós-morte do nome social no atestado de óbito. Amanda foi morta a facadas, no último dia 1 de fevereiro, no bairro Jardim República, em São Gonçalo. O acusado do crime, um suposto namorado, foi preso. A mãe dela foi recebida pela equipe técnica do Movimento de Mulheres em São Gonçalo (MMSG), na última segunda-feira, para analisar o caso e acionar o sistema de garantia de direitos.
Segundo a família, Amanda, que foi vítima de transfeminicídio, sempre lutou pela causa trans e teve sua memória maculada, justamente no seu ‘último adeus’. Por uma exigência legal, o cartório se recusou a emitir o atestado de óbito com o nome social da trans. Apesar da mudança já constar na carteira de identidade, Amanda ainda não havia realizado a retificação na certidão de nascimento e foi sepultada com nome civil masculino. Em memória à Amanda, a família pretende acionar a Justiça para conseguir o direito de requalificação civil pós-morte.
Consternada, a dona de casa Silvia de Souza Soares Souza, de 52 anos, mãe da Amanda, disse ter ficado indignada ao ver o nome ‘masculino’ no documento, contudo, reuniu forças e reiterou a disposição da família em lutar pelos direitos da filha, mesmo após a sua morte. Durante acolhimento realizado pela gestora do MMSG, Marisa Chaves, e sua equipe técnica, Silvia relatou, que, a despeito do sofrimento imputado pelo luto, não medirá esforços para conseguir fazer valer os direitos da filha e lutará para que outras famílias não passem pelo mesmo constrangimento.
“Morreu Amanda, sepultaram Yago”, disse Silvia, às lágrimas, ao lembrar da trajetória da filha, que teve que vencer preconceitos pelo direito de ‘ser mulher’. Amanda atuava como cantora sertaneja e era passista da escola de samba Unidos do Cubango. “Ela foi brutalmente assassinada porque era uma mulher trans. Ela era linda, alegre, comunicativa. Quando vimos o atestado de óbito, com o nome masculino, nos causou perplexidade, pois, todos a conhecem como Amanda. Mesmo cientes das atuais exigências legais, que condicionam as alterações de nomes a cumprimentos de ordens judiciais, estamos buscando apoio com entidades que defendem às causas trans para solicitar a mudança pós-morte. Será um tributo à Amanda e um ato simbólico na luta pelos direitos trans”, ressalta Silvia.
'A busca pelos direitos da filha trans sinaliza um avanço na luta contra o preconceito'
Para Marisa Chaves, que está há 34 anos à frente do MMSG militando pela garantia de direitos, a reivindicação da família da mulher trans Amanda Souza pela requalificação pós-morte representa um avanço na luta contra o preconceito e as violências de gênero. A gestora ressaltou, no entanto, sobre a importância de familiares e entidades de defesa das causas trans estarem atualizados sobre a legislação para acionarem o sistema de garantia e pleitearem seus direitos.
“Amanda morreu porque era uma mulher trans, porque se reconhecia como uma mulher e foi vítima de transfobia. Os feminicídios e transfeminicídios precisam ser combatidos e os alegados autores investigados, julgados e responsabilizados pelos crimes. A busca dessa mãe pelos direitos pós-morte da filha trans sinaliza um avanço na luta contra o preconceito e as violências de gênero”, ressalta Chaves. “Temos que incentivar e criar condições dos trans realizarem alterações em suas certidões de nascimento sem burocracias e custas judiciais. O caso da Amanda é um alerta à incidência de subnotificações em crimes de transfeminicídios, que impactam nos dados e na implementação de políticas públicas”, complementa a gestora.
Caso foi encaminhado à Defensoria Pública
A família da Amanda está sendo orientada conjuntamente pelo Centro de Cidadania LGBTI da Metropolitana I (Niterói) e pela equipe jurídica do MMSG, que fez um encaminhamento ao Grupo de Trabalho de Feminicídio do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM). “A equipe fez uma articulação com a rede e, de pronto, nosso corpo jurídico solicitou ao núcleo a retificação pós-morte do nome Yago de Souza Soares Souza em face da requalificação do nome civil para o nome social e gênero feminino Amanda de Souza Soares Souza”, explicou a advogada Velange Bastos.
No Estado de Minas Gerais, a Lei Estadual 24.632/2023, publicada em 29 de dezembro de 2023, prevê condições especiais para cidadãos inscritos no Cadastro Único dos Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). A lei oferece gratuidade dos custos de cartório para retificação de nome e gênero de pessoas transgênero em situção de vulnerabilidade econômica. No Estado do Rio, os valores das taxas cobradas pelos cartórios podem chegar a R$1 mil, segundo informações repassadas pelo Centro de Cidadania LGBTI da Metropolitana I. O caso da Amanda, segundo especialistas, também se enquadra como um 'desaparecimento institucional', pois, sem a retificação do atestado de óbito, o fato será contabilizado nas estatísticas como a morte de um homem.
Brasil é o país que mais 'mata' trans no mundo
De acordo com o relatório anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil é o país que mais mata trans no mundo. Em 2023, o país teve 145 pessoas trans assassinadas, apontando um aumento de 14 casos em relação ao ano anterior. Para chamar atenção do público, a Antra lançou uma campanha denominada ‘Resistir pra Existir, Existir pra Reagir’ para chamar a atenção sobre as graves violações de direitos humanos à população de Travestis e Mulheres Transexuais no Brasil.
“O Brasil é o país que mais assassina essas pessoas no mundo. O número de assassinatos no país é três vezes maior que o segundo colocado no mundo, o México, com média de 50 mortes. Sabemos que a tarefa não é nossa somente, ela só poderá ter efeito se tivermos conosco instituições e pessoas que reajam dessa mesma forma à violência que impera no nosso país”. (Mensagem emitida pela presidente da Antra, Keila Simpson, na página oficial da entidade).
Equipamentos do MMSG atenderão vítimas de violência em três municípios
Durante atendimento à mãe da mulher trans Amanda Souza, Marisa Chaves destacou o início do Projeto NEACA Tecendo Redes, em 2024, que conta com a parceria da Petrobras, e também receberá as demandas relativas às violências domésticas e gênero. Com objetivo contribuir para a promoção, prevenção e garantia dos direitos humanos de crianças, adolescentes e jovens, o projeto disponibilizará núcleos de atendimentos nos municípios de São Gonçalo, Duque de Caxias e Itaboraí.
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