Rio - O Rei Momo cantou para subir e o país do ziriguidum dá lugar ao país da bola. Com o couro curtido nas agruras dos gramados, todavia, já começo a sentir receios milenares, fincados na alma do menino que eu era e viu o desastre da Copa do Mundo de 1982.
Ganhar uma Copa é menos prova de competência que confirmação do destino — e o nosso destino, em 1982, era levantar a taça, confirmando a máxima de que a nêga é minha, ninguém tasca, eu vi primeiro. Era, além disso, a chance de dizer aos coroas que tinham visto o escrete papar a Jules Rimet em 1970: eu também vi o Brasil campeão do mundo. Imaginei o gol como nosso destino manifesto e tive um misto de pena e desprezo pelo resto do planeta — a humanidade, sem a amarelinha, era um aglomerado de gente vivendo longe da zona do agrião. E não tínhamos só Zico, Falcão, Sócrates e o Júnior cantando ‘voa, canarinho’. Exu, Tupã e Nossa Senhora Aparecida jogavam com a gente, conforme minha avó me explicara.
Até que veio a Itália.
Jogo fácil. Mera formalidade temperada de arte e redes estufadas. Quem disse? Eles foram fazendo gols, nós fomos empatando. O primeiro queijo é dos ratos, a primeira esmola é dos pobres e o futebol é que nem o bento que bento é o frade — o seu mestre mandou o Brasil ser campeão. Não obstante, levamos um bolo.
Perdemos. Vou encher a cara, disse meu avô. Eu também. Peguei as merrecas da mesada, guardadas com afinco para uma tarde de amores urgentes em certa mansão da Rua Alice, e entrei na lanchonete pisando forte, feito pistoleiro num saloon do Velho Oeste. Caixão não tem gaveta; eu vou é torrar o dinheiro todo, já que o mundo não é mais o mundo: quero um sundae grande de flocos com muita castanha.
A garçonete, aos prantos, não falou nada. Preparou o sundae e foi chorar mais um pouco a eliminação. Peguei a colher e fui dar a primeira mordida. Não consegui. Não, eu não sentia tristeza. Eu não sentia coisa nenhuma. Tudo era desencantamento — e se não faz sentido, vou sentir o quê? Fiquei ali bem umas duas horas. O sorvete derreteu.
Imaginei o estádio escuro, sem ninguém. Um estádio vazio, com os refletores apagados, é desde então a imagem mais triste e abandonada que me ocorre para definir a não vida. Ausência de tudo, inclusive da morte. A amiga psicóloga da tia-avó disse: esse menino está deprimido. A bola, se falasse, diria que esse menino não está. Será isso a ausência da alma? Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Sou mais chegado às alegrias. O diabo é que vez por outra dou de sonhar, como ontem, com o sorvete derretendo.