Rio - No segundo andar de seu “parque de diversões”, a casa-ateliê construída em Nova Iguaçu com as próprias mãos — ferramentas vivas que revelam histórias em telas e objetos —, Raimundo Rodriguez encaixa pedaços de latas velhas e marteladas de tinta. E surgem as ‘escamas’ de cores e texturas próprias dos quadros da série ‘Latifúndios’, que acabaram revestindo a casa do coronel Epa (Osmar Prado) no mundo de sonhos da novela ‘Meu Pedacinho de Chão’.
Vive assim, respirando em permanente metamorfose, o trabalho do artista plástico cearense de Santa Quitéria que chegou adolescente à Baixada Fluminense — onde integra o coletivo Imaginário Periférico —, expõe do Rio a Nova York, e é responsável pela personalidade visual dos premiados trabalhos do diretor Luiz Fernando Carvalho.
“Não faço cenário, faço ambiente. Uso a televisão para a arte. Eu e o Luiz temos uma sintonia muito grande, nos interessa o processo, o estímulo de inventar coisas novas. A liberdade é total, por isso trabalho com ele”, diz Raimundo.
Com equipes de catadores, ele usou mais de 20 toneladas de lata na Vila de Santa Fé, cidade cenográfica da trama das seis, onde cria de árvores e brinquedos aos lindos cavalos articulados montados por personagens como o capataz Zelão (Irandhir Santos). “É mais do que o olhar infantil do mundo. Há o pai, a terra, o conflito, arquétipos universais em linguagem autoral”, afirma.
E segue limpando a poeira (intencional) de objetos espalhados pelo ateliê, onde guarda coleções completas de artistas como Alcécio Carvalho, o Timbuca, peças antigas e artefatos que ganha, recolhe ou transforma em seu universo. São figuras em tons de terra e planta, natureza nascida de restos urbanos e cenários habitados também por santos e guerreiros, sugerindo mística e religiosidade.
São Jorge é inspiração, da camisa que Raimundo fez para a nova coleção da grife Complexo B (com a inscrição “estive na lua e lembrei-me de você”) ao fantástico cavalo mecânico construído para a comissão de frente da Beija-Flor, que marcou o desfile de 2013. Na mesma rua de sua ‘oficina’, no bairro de Três Corações, Raimundo vive em uma casa que também construiu, aproveitando cada tijolo de outra, demolida em Nilópolis.
Por trás do portão feito de ferramentas quebradas e cor de ferrugem — que poderia estar em trabalhos elogiados como o da minissérie ‘A Pedra do Reino’ —, a obra acompanha os relevos do terreno e abriga quadros de artistas populares brasileiros que chegaram a cruzar o oceano para exposições. “Se estou varrendo a rua, penso em arte. Estou experimentando. Meu negócio é juntar coisas e pessoas. Minha casa é meu laboratório de vida”, afirma o artesão.
Alma artística
Após realizar no Rio a exposição ‘Santos Arcanos’, em 1994, Raimundo foi procurado por Luiz Fernando Carvalho, que disse: “Tenho um projeto e quero trabalhar com você. Vou te ligar.” O projeto demorou dez anos para acontecer, e o telefone de Raimundo tocou em 2004. Era ‘Hoje é Dia de Maria’, o primeiro dos seis trabalhos da dupla, programas que levaram estética diferente e elogiada à dramaturgia televisiva, como ‘A Pedra do Reino’ e ‘Capitu’, quando Raimundo forrou de jornal um cenário de mais de 1.500 metros quadrados.
No centro de produções da Globo, o Projac, Raimundo tem ateliê próprio e gasta mais de cinco horas diárias para ir e voltar. Não abre mão de estar sempre presente. Nem de viver na Baixada.
"Todos sabemos que a região tem problemas de sobra, cidadania é uma palavra desconhecida. Temos uma cultura rica e desprezada. Além disso, minha mãe tem 91 anos, meu pai tem 90, eles moram aqui e quero estar perto deles”, afirma.
No fim do ano passado, o artista de 51 anos recebeu o prêmio Alma da Baixada, criado pelo DIA para homenagear as personalidades que mais se dedicam ao desenvolvimento da região.