Rio - Aos 35 anos, Bianca Monteiro, rainha de bateria da Portela, foi um dos destaques do último Carnaval ao representar Oxum e desfilar com o corpo todo pintado de preto e dourado. Em uma Sapucaí com muitas beldades famosas ou que pagam pelo posto, ver uma integrante da comunidade brilhar durante tantos anos — oito no caso dela — é raro.
Além do samba no pé e simpatia, a rainha — garantida no Carnaval do próximo ano — mergulhou no enredo "Um Defeito de Cor", desenvolvido pelos carnavalescos André Rodrigues e Antônio Gonzaga, e inspirado no livro homônimo de Ana Maria Gonçalves. Com o desfile, a Azul e Branca de Oswaldo Cruz ficou em quinto lugar e voltou para o Desfile das Campeãs.
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Bastante ativa em Madureira e Oswaldo Cruz durante o ano todo, Bianca está à frente de oficinas que atendem à comunidade na antiga sede, a Portelinha e, no pré-Carnaval, reuniu um grupo para ler a obra, que tem quase mil páginas, e debater sobre a luta contra o racismo.
"Temos que sair da nossa zona de conforto. Hoje em dia não cabe mais só a prática, precisamos da didática. Precisamos saber o que estamos fazendo e da nossa importância na sociedade. O Carnaval não é oba-oba, é uma empresa. Além fabricar sonhos, o Carnaval fabrica vidas. Não dá mais para sermos só vistos até a Quarta-Feira de Cinzas e depois sumirmos. Precisamos ser vistos o ano todo, porque esse é um trabalho de um ano inteiro, de muita dedicação e amor", analisa.
Confira bate-papo especial com a rainha!
Como foi o desfile da Portela na sua opinião e o que achou do resultado? "Amei o desfile da nossa escola, acho que superou nossas expectativas. Eu sempre me coloco nos dois lados, como rainha e como portelense. Sou apaixonada, fanática, quero ver tudo perfeito e, graças a Deus, foi o que consegui ver na Avenida. A Portela emocionou! A escola realmente entregou aquilo que se propôs a fazer, que era emocionar com esse enredo forte, falando de mãe, de afeto, de amor... e falar de mãe é algo que mexe com a gente.
Todas as escolas querem ser campeãs do Carnaval, nós também. Para ser campeã, sabemos que também temos que errar menos. Infelizmente, como estamos sendo julgados, temos que respeitar algumas opiniões. Mesmo achando que alguns pontos que perdemos não foram corretos, estamos felizes por voltar nas campeãs. Essa sensação é muito boa."
Fale um pouco sobre sua fantasia e a importância de representar Oxum na Sapucaí.
"Estamos resgatando a nossa história no Carnaval e conseguimos colocá-la livremente. Falar dos nossos ancestrais, dos nossos orixás, daquilo que a gente cultua, que a gente acredita e que ama. E trazer essa orixá tão rica, rica em amor, em afeto, em maternidade, com a sua força, é muito significativo. As pessoas acham que Oxum é tranquila, que Oxum é serena. Não, Oxum é sábia.
Através do abebé [espécie de leque], ela olha todos os inimigos e sempre os deixa perto dela. A guerra da Oxum é uma guerra fria. Então, é um orixá muito poderoso, muito sábio, que usa do seu encanto e beleza pra conseguir o que quer e conseguir ganhar uma guerra, na verdade. A história (do livro) é que uma escrava tinha recebido uma estátua, vê uma cobra e joga a peça no animal. Dentro da estátua, tinham pepitas de ouro. Com o valor, a mulher enriqueceu, comprou sua carta de alforria e do filho e acabou perdendo o contato com ele. Nesse desespero, ela consegue ser salva por Oxum, que dá liberdade a ela. Representar a liberdade do nosso povo, dos nossos ancestrais e da nossa história foi muito importante."
Você é uma rainha que além do samba e de todo o carisma no desfile, tem um trabalho em oficinas durante todo ano. Conte sobre esse projeto e a importância de uma rainha estar ligada à comunidade não só durante o Carnaval.
"O projeto Oficina de Arte Paulo da Portela é meu bebezinho, né? E eu sou uma pessoa de muito movimento. A gente acabou de falar aí de Oxum, Exú, Ogum, movimento e caminho. Eu acredito muito nessa força de você não só falar, mas praticar. O projeto é a prática de tudo que eu acredito, é feito para um mundo melhor, para o artista, para as pessoas olharem a nossa arte como uma profissão, para que possamos também adquirir mais conhecimento.
É uma maneira também de eu devolver para a minha comunidade tudo aquilo que eles me dão: amor, carinho, lealdade e respeito. O projeto não é só voltado para isso, é para abraçar o sambista e as pessoas. A gente está muito distante de afeto, de carinho, e as pessoas precisam disso; meu projeto é uma mistura de tudo: de aprendizado, de família, de amor, fortalecer cada vez mais o conhecimento do samba, profissionalizar mais o samba. Para que isso aconteça a gente precisa aprender. O projeto é exatamente isso: fazer com que as pessoas tenham um olhar amplo sobre a nossa cultura, sobre o nosso trabalho, que é o Carnaval daquilo que a gente faz."
Você 'mergulhou' no enredo da Portela, fez até rodas de leituras do livro 'Um Defeito de Cor' e ajudou a comunidade a conhecer mais sobre a história. Você costuma estudar bem os enredos ou esse ano foi especial por conta do tema?
"Como falei anteriormente, não cabe mais não saber o que estamos cantando, não entender o enredo. No projeto, temos uma oficina que se chama Samba e Literatura e queremos trazer todo ano o conhecimento do enredo, samba-enredo e sinopse. Muita gente entra na Avenida e não vê a sinopse, não sabe nem o que está levando para a Sapucaí. Quando você também dá esse conhecimento às pessoas, elas entendem e fortalecem mais o canto delas. Sabemos que é difícil, que é uma leitura muito grande e requer tempo, mas acho que conseguimos atingir o que queríamos: que as pessoas entendessem a força desse samba.
Esse livro muda a nossa vida, é a história que a História não conta. O livro tinha que ser obrigatório nas escolas municipais, porque fala de toda a passagem dos nossos ancestrais até aqui e aborda a força da mulher. Tudo é a força da mulher. Temos essa força e esse livro, que não coloca a mulher como um anjo ou santa, mas como alguém de verdade que sofre, luta e que, por escolhas erradas, acaba passando por determinadas coisas na vida. É uma obra muito atual, forte e verdadeira. Foi um presente que ganhamos na oficina."
Muito se falou sobre a branquitude entre os jurados e até entre as rainhas. No ano em que a Portela traz um enredo da luta contra o racismo, qual a sua opinião sobre isso? Faltam mais negros para avaliarem e fazerem Carnaval?
"Eu, como mulher preta, acho que, infelizmente, ainda enfrentamos muito racismo. Há muito preconceito de aceitação entre pessoas pretas e mulheres, em lugares e posições de comando. (O racismo) é algo estrutural. Graças a Deus, ao longo do tempo — e sobre isso a internet também trouxe mais conhecimento — as pessoas pretas estão se vendo como pretos e lutando pela causa.
Acho que o que aconteceu nessa questão, não só do enredo "Um Defeito de Cor", mas o olhar que as pessoas estão tendo hoje sobre algo que vem da vida toda, já é uma forma de se libertar. Acredito muito, sim, nesse olhar, nessa mudança, de termos esse lugar de fala e saber trabalhar isso. Por isso que falo muito no projeto social, usando essa frase: 'eles estão no nosso lugar, eles vêm ocupar o nosso lugar e a gente não vai ocupar o lugar deles'. Passa o Carnaval, a gente já não tem mais serventia. Eles têm o trabalho deles e mais oportunidades do que a gente. Estou levando essa frase para minha vida toda e trabalhando no meu projeto. Futuramente, teremos mais rodas de mulheres, mais encontro com as mulheres pretas (na Portela). Quanto mais conscientes do que acontece na sociedade, mais conseguimos lutar contra o preconceito."
Você sente falta de ver mais rainhas e musas das comunidades na Sapucaí?
"Tenho 35 anos, comecei no Carnaval com 14 e vi várias etapas do samba. Vi uma etapa da Luma de Oliveira, da (Adriane) Galisteu, vi outras etapas... Hoje estou vendo uma etapa de muitas meninas da comunidade, sim. Tem eu, a Mayara (Lima) do Paraíso do Tuiuti, Evelyn Bastos, da Mangueira, Lorena Raissa, da Beija-Flor, e Maria Mariá, da Imperatriz. Hoje posso falar que temos um lugar maior, um olhar com mais carinho.
É muito fácil criticar e difícil elogiar, bater palma pra uma evolução. Já estamos fazendo isso, essa evolução já está acontecendo. Estamos em um novo tempo, um tempo das pessoas terem essa consciência. As pessoas querem ver isso, querem ver a verdade. A internet cobra a verdade das escolas de samba em tudo que fazemos. Quando se tem meninas da comunidade ali na Sapucaí, as outras pessoas também se veem representadas através da gente e do nosso trabalho. Todas essas lutas não estão sendo em vão. Toda essa manifestação, esse olhar diferente, de vir a Raíssa que foi da Beija Flor, começou novinha e já fez a parte dela. Pertencer e se manter também é uma forma de resistir e militar. Estamos sempre olhando uma pelas outras, para nos espelharmos.
Hoje as meninas sonham em ser rainhas, tanto que até brinco e falo: "gente, ninguém quer ser mais passista. As crianças já querem ser musas ou rainhas". Isso é legal, porque no meu tempo nunca pensei que fosse capaz de ocupar esse lugar. Sempre vi celebridades e modelos como rainhas, nunca vi uma pessoa da comunidade que me representava naquele lugar. Hoje sou essa pessoa que as crianças, meninas e adolescentes veem e se inspiram. Através do meu trabalho, elas acreditam que podem ser capazes de conseguir realizar também."
E como recebeu o resultado de que foi a melhor rainha de 2024 em enquete do site 'F5', da 'Folha de S.Paulo'?
"É sempre muito bom, né? Esse ano foi de Oxum, uma divisora de águas. Nós recebemos elogios e muitas coisas positivas, e também muitas críticas. Sabia que a crítica poderia acontecer, porque os carnavalescos vieram com essa opção de eu vir com o corpo pintado. A falta de conhecimento das pessoas com o livro, com a história do orixá, faz com que elas tenha uma opinião e acho que cada um tem o direito de fazer o que quiser. Quem está na chuva realmente vai se molhar e eu entrei na chuva.
Abracei a história, abracei a ideia e estudei, me programei e me preparei. Quando se faz tudo isso, essa construção durante esse tempo todo, só fico muito honrada e feliz em ver que as pessoas reconheceram esse trabalho. Não é só um trabalho de colocar uma roupa, é um ano de muito estudo, de correr atrás. Se manter (como rainha de bateria) é muito mais difícil do que entrar.
Esse lugar, infelizmente, foi superfaturado. As pessoas olham muito a estética, a roupa, o corpo...por mais que você tente mudar algumas coisas, não consegue mudar tudo. Tem que dançar conforme a música. Poder receber esse prêmio e outros também, é a resposta do orixá. Sou uma iniciada no candomblé e eu tenho muita fé nos meus guias, nos meus orixás e em quem me protege. Essa entrega foi de coração e a equipe que fez (o Carnaval) foi maravilhosa. Deu tudo certo."
Conte um pouco da sua história com a Portela e como ser rainha transformou sua vida.
"Comecei com 14 anos e sempre tive o sonho de ser rainha de bateria, sabia que, ao mesmo tempo que era algo que eu sonhava, achava impossível acontecer. Isso por nunca ter visto alguém da comunidade como rainha. Ao mesmo tempo, o sonho não me deixava desistir. Meu pai sempre me levou na Portela, aí fui princesa do Carnaval em dois anos consecutivos, 2015 e 2016. Depois de 2017, virei rainha.
Passei a vida toda na ala de passistas e, para mim, é uma transformação ainda. Cada ano como rainha é algo diferente, uma caminhada diferente e uma vitória diferente. Digo que a gente vai subindo as escadas e ainda estou nesse degrau. Ser rainha não é só chegar e estar à frente da bateria: é o meu trabalho, meu ofício e a realização de toda uma história. Já estou com 35 anos, dediquei toda minha vida a isso, acreditei no Carnaval, no samba e vido dele, tudo isso me transformou. De menina, passei pela minha adolescência e hoje sou uma mulher. Agradeço a pessoa que sou hoje ao samba e à Portela e, claro, à minha família que também que sempre apoiou e apoia até hoje."
Além das oficinas, fale um pouco sobre sua vida durante o ano fora do Carnaval.
"Além da oficina, também tenho viagens marcadas, workshops e palestras. Faço outras coisas voltadas à cultura e ao Carnaval. Faço faculdade de Serviço Social, onde me encontrei. Sempre tive muitas dúvidas na minha vida e o samba me trouxe isso, essa parte social. Gosto de estar com pessoas, amo cuidar de pessoas.
As pessoas trazem essa energia para o meu corpo e chego em casa 100% acordada, querendo falar e conversar. O samba me trouxe essa questão social, que sempre fiz antes do projeto. Nós entregávamos quentinhas, separávamos roupas para doar para pessoas em situação de rua em Madureira. Eu não poderia estar em nenhum outro lugar e gosto muito de transformar a vida das pessoas. Assim como a minha vida foi transformada por estar à frente da bateria, também quero passar isso adiante."
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