’Mangueira À Flor da Terra - No Rio da Negritude entre Dores e Paixões’ contará história de Rio pelo olhar dos BantusRenan Areias/Agência O Dia
Os Bantus foram um agrupamento etnolinguístico do continente africano, de regiões que atualmente compreendem países como Angola, Congo e Moçambique, e eram a maioria dos escravizados que chegavam ao Rio de Janeiro pelo Cais do Valongo. Através dos costumes, da culinária e da língua, entre outros elementos, foram estabelecendo suas raízes na cidade, que permanecem fincadas em todos os cantos, ainda que pouco reconhecidas.
"Com a diáspora, toda essa gama de saberes chegou ao Rio de Janeiro, no Cais do Valongo, e de lá se disseminou por toda a cidade. Daqui de onde se chama Pequena África, região essencialmente negra, essas práticas se alastraram para o restante da cidade essas, reverberando uma cultura, uma culinária, até no idioma", apontou o carnavalesco Sidnei França. "A maneira de falar o português é totalmente afetada pela tradição Bantu, palavras como quitanda, quitute, chamego, xodó. Esse enredo vem nessa busca muito honrosa de atribuir autoria a essa tradição Bantu que é apagada", continuou.
O carnavalesco reconhece que retratar a influência dos povos africanos na formação do Brasil não é uma novidade nos desfiles, mas afirma que a Mangueira se afastou da experiência nagô-iorubá - de grande influência dos escravizados que chegaram pela Bahia -, e traz a vivência dos Bantus, que floresceram em solo carioca. "O que a Mangueira busca é reivindicar uma autoria para uma etnia que chegou ao Brasil pela escravização e o desfile se ocupa de ir narrando como essa contribuição Bantu moldou a alma carioca até os dias atuais".
A passagem da Verde e Rosa quer também mostrar ao público que os Bantus seguem presentes no Rio nos dia de hoje, por meio da imagem dos chamados "crias do morro". O desfile pretende levar a mensagem dolorida, mas realista, de que a herança desse grupo se traduz também por meio da violência, repressão e marginalização que a população das favelas ainda sofre. Para França, o objetivo é escancarar esteriótipos e a discriminação como forma de quebrar preconceitos e criar uma ponte para um futuro melhor.
"A Mangueira busca utilizar da sua força, seu discurso como escola preta aquilombada no Morro da Mangueira para justificar como uma das heranças Bantu, a figura do "cria dos morros”, se for bem tratada, há de ser a redenção do Brasil, com um futuro promissor, não só pela educação, mas pela quebra de preconceitos, de olhares enviesados para essa população preta", disse Sidnei.
Alegoria resgata história de preservação da cultura Bantu
Na missão de resgatar elementos da cultura Bantu apagados da história, a Mangueira terá uma das alegorias dedicada a um dos mais importantes símbolos da preservação das tradições desse povo: as casas de zungu. O carnavalesco explica que esses locais eram como cortiços e estavam localizados na região da Pequena África, especialmente no Largo de São Francisco da Prainha, Morros da Conceição e Providência, além da Gamboa.
As casas de zungu eram uma espécie de "quilombo urbano", onde os negros se refugiavam de uma elite preconceituosa e repressora e podiam tocar o samba, macumba e jogar capoeira que, à época, eram práticas criminosas por serem consideradas "vadiagem". Elas receberam este nome em referência aos pratos de angu servidos pelas tias quituteras e eram identificadas por meio de panos brancos deixados nas janelas.
"A grande chave do enredo da Mangueira é ir ao passado, mas não esquecer do presente, porque se a gente for olhar hoje, preservar é defender o samba, o funk, que são ritmos negros e marginalizados. O samba até que tem mais acolhida depois de tantas décadas, mas o funk ainda é visto como uma música estritamente preta, do morro, de uma camada menos "aculturada", como se isso fosse pejorativo. O desfile tem esse viés político de levantar essa bandeira de equiparação, de equidade social, de olhar para a figura do morro com respeito, porque a Mangueira está no morro e ela quer respeito".
Encontro entre tradição e modernidade
Apesar de estreante no Carnaval carioca, Sidnei França é um dos maiores campeões dos desfiles de São Paulo, com quatro títulos pela Mocidade Alegre e um com a Águia de Ouro, no Grupo Especial, além do mais recente no Grupo de Acesso, com a Vai-Vai, em 2023. Para o carnavalesco, começar sua história nos desfiles do Rio em uma escola com o peso da Mangueira é um presente carregado de uma tradição que será honrada na avenida. Mas, sua marca registrada não vai ficar de fora: a modernidade.
Convidado em março de 2024 para comandar o Carnaval da Mangueira deste ano, França conta que a presidente Guaynara Firmino lhe deu liberdade para criar um desfile à sua maneira: arrojado, com temas que provocam questionamento e debate e se traduzem na estética não convencional. Entretanto, ele afirma que não vai abrir mão de "beber da fonte da tradição" e preservar símbolos sagrados da escola.
"A ousadia tem locais e tem locais que são sagrados: a velha guarda, ala das baianas, mestre-sala e porta-bandeira. Os signos basilares da Mangueira são imutáveis, não dá para brincar com isso. Mas aquilo que a gente sabe que não carrega tradição, os desenhos dos carros alegóricos, as cores, texturas, a gente está brincando e muito", afirmou.
A Mangueira vai cruzar a passarela do samba com cinco alegorias, três tripés e 27 alas. Sem revelar detalhes, o carnavalesco disse que o desfile da agremiação será "carregado de tecnologia", com um projeto de luz que descreveu como sofisticado e integrado com os elementos de iluminação cênica que a Sapucaí oferece.
"A ideia é quando a Mangueira desfilar em 2025, as pessoas captem uma Mangueira renovada por um carnavalesco que tem uma linguagem mais arrojada", comentou Sidnei, que disse ainda estar pensando em uma performance para atrair as novas gerações.
"Precisamos estar abertos para conectar a Mangueira ao futuro, para ser atrativo para as próximas gerações e não perder força. A criança que está nascendo hoje e vai ser jovem daqui a 20 anos precisa falar: 'eu sou mangueirense porque me identifico, mas ela também fala sobre o meu tempo'. Eu tenho a consciência de que o que eu estou fazendo hoje pode ser atrativo para muitos sambistas novos que vão falar: 'eu sou Mangueira por causa daquele desfile'".
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