Que vestibular não é fácil, todo mundo sempre soube. Que o ENEM é uma prova dura de se fazer, pelo tempo e pela extensão, também não é segredo. Desde o Ensino Fundamental, os alunos ouvem falar do tal exame que terão que fazer no final do ciclo básico e o fantasma começa a tomar forma. Fantasma esse que está plenamente formado, com braços, pernas e uma cabeça assustadora desde o início do Ensino Médio, e assombra, tira o sono e faz tremer milhões de candidatos todos os anos. E por mais que todos saibam que fantasmas, na verdade, não existem, não há realidade que desmistifique essa prova.
Como professora de Ensino Médio e Pré Vestibular há anos, sinto que meu trabalho de ensinar cada vez mais divide espaço com funções para as quais não sou exatamente preparada, capacitada e nem mesmo estudei. Com as constantes crises de choro e ansiedade, por vezes sou psicóloga. Ouço, procuro entender, tento me lembrar de como era estar naquele lugar. Como era olhar para frente e o futuro ser uma névoa com um grande ponto de interrogação no meio. Compartilho um pouco da minha experiência - mesmo para dirimir aquela imagem de super-herói que, muitas vezes, envolve a aura de nós professores - para mostrar que, aos 17, em pleno ano de vestibular, eu tive crise de acne, aumentei 2 graus de miopia e cheguei ao final do ano pesando 45kg. E claro, chorava todos os dias. Procuro mostrar que todos passamos pela mesma coisa, sentimos as mesmas pressões vindas de todos os lados (família, escola, sociedade...e nós mesmos) e acreditamos que o vestibular é o momento mais decisivo de nossas vidas, apesar de não ser. Mas, por vezes, também sou mãe. Quando percebo alguma faísca de displicência e preguiça, puxo a orelha mesmo. Dou bronca, tento trazer para a realidade e mostrar como eles têm sorte de, ao menos, terem a possibilidade de acesso a uma educação de qualidade em um país tão desigual. Volta e meia preciso ser vidente também. Afinal, não há uma semana que passe em que não me perguntem “qual vai ser o tema da redação do ENEM esse ano?”. Procuro explicar que, de verdade, eu não tenho bola de cristal, não sou o Gênio da Lâmpada e, se fosse adivinhar, optaria por gastar esse cartucho com as dezenas da Mega Sena, e não com o tema da redação. E é claro, como se não fossem atribuições suficientes, também sou aquela que tenta destruir o fantasma – seja lá em qual função isso se encaixe.
Brincadeiras à parte, a verdade é que muito me preocupa esse panorama. A forma como os estudantes lidam com o ENEM e os vestibulares já perpassou há tempos uma preocupação natural frente a algo importante. Hoje, o que percebo é que tal ansiedade beira o desespero, deixando-os doentes, apáticos e, com alguma frequência, infelizes. E me pergunto de quem é a culpa disso – se das famílias, das escolas, da sociedade. Hoje, penso que o fantasma criado tem um pouco de cada um desses setores, que, ao também sentirem inúmeras pressões, falham em endereçar a melhor forma de isso chegar a pessoas que mal saíram da adolescência. A culpa é nossa, e cabe a nós termos a maturidade suficiente para entender que o ENEM está longe de ser tudo, apesar de ser muitíssimo importante. Afinal, a vida de ninguém acabou porque foi mal na prova de Matemática. Precisamos enxergar nossa responsabilidade nisso, ou perpetuaremos gerações e mais gerações de pessoas à beira de um ataque de nervos. O inferno, já disse Sartre, são os outros – mas o fantasma, sem dúvida, somos nós.
Carolina Pavanelli trabalha com educação há dez anos e dá aulas de Redação com ênfase na produção de textos nos moldes dos vestibulares e ENEM. Além disso, é diretora pedagógica de uma Plataforma de Ensino, produzindo materiais didáticos e capacitação de professores no Brasil. Ela escreve às quartas-feiras em O DIA. Seu Instagram é @_carolinapavanelli