Morre Pelé, aos 82 anos, nesta quinta-feira (29).Reprodução Twitter
"Era um capital simbólico que ele tinha como campeão. Mas a pressão foi muito forte. Imagina o maior jogador de futebol se despedir da seleção brasileira no auge sem qualquer homenagem do governo? Foi isso que aconteceu", relembra o historiador José Paulo Florenzano, que publicou pesquisa sobre o assunto analisando os jornais da época.
João Havelange, então presidente da CBD (antigo nome da CBF), tentava ganhar prestígio no mundo esportivo em busca do cargo de presidente da Fifa. Para tentar manter Pelé na seleção, ele invocou um decreto-lei de número 5.199 que lhe outorgava o direito de "requisitar qualquer jogador" sujeito a "ser suspenso e sofrer outras punições legais, dentro da legislação" em caso de recusa. "O Pelé peitou o Havelange nessa ocasião e em outras. Ele chegou às últimas consequências dizendo que se fosse pressionado, encerrava a carreira no futebol. O Estadão foi o principal jornal que saiu em defesa da decisão de Pelé", lembrou Florenzano.
PRESSÃO MILITAR
No dia 10 de julho, véspera do primeiro jogo de despedida, o jornal publicou um editorial com o título: "Episódio esportivo passa a ser político". O primeiro parágrafo: "O inábil e irritado recuo do governo, cancelando as homenagens oficiais na despedida de Pelé da seleção brasileira imprimiu um colorido político a um episódio que deveria esgotar-se no plano esportivo, e criou para o esquema publicitário governamental uma situação que não pode deixar de ser reconhecida como altamente desconfortável."
Foram dois jogos de despedida. O primeiro em 11 de julho de 1971, no Morumbi, contra a Áustria. Havia mais de 110 mil torcedores gritando "fica". Pelé marcou o gol do Brasil no empate por 1 a 1, seu último gol pela seleção brasileira. Sete dias depois houve o duelo com a Iugoslávia no Maracanã, com 140 mil torcedores clamando "fica", que terminou no empate por 2 a 2
A pressão não parou por aí. Em janeiro de 1972, o Estadão destacou: "Pelé não aceitou, ontem à tarde em Brasília, o último e mais importante apelo de quantos lhe foram feitos para voltar à seleção brasileira e participar da Minicopa: do presidente Garrastazu Médici, que o apresentou 'na condição de representante da torcida brasileira', durante audiência concedida no Palácio do Planalto ao jogador e à diretoria do Santos Futebol Clube."
O "não" foi um golpe também em Havelange, que tentava organizar um torneio com as principais seleções do mundo em 1972. Era parte de sua campanha para assumir a presidência da Fifa, que viria a ser bem-sucedida. Mas o torneio não foi. Além de Pelé, Alemanha, Itália e Inglaterra também não quiseram participar.
RACISMO
A pressão em cima do Rei do Futebol continuava sem dar trégua. Parte da opinião pública tomou as dores do governo militar e passou a tentar apresentar Pelé como uma pessoa gananciosa, que havia deixado a seleção para ganhar dinheiro. Pelé, obviamente, era bastante requisitado para comerciais e filmes.
O jornal Cidade de Santos publicou uma série de charges contra Pelé, assinadas por J.C. Lôbo, algumas preconceituosas, apresentando o Rei do Futebol como vendedor de refrigerante no estádio, por exemplo. "Foram muitas charges e comentários racistas. O Pelé querer contribuir para a sociedade como empresário, no fundo, a interpretação é essa: o lugar do Pelé é no campo jogando bola, uma maneira de designar o lugar do negro na sociedade", opinou Florenzano.
Em fevereiro de 1974, a Copa do Mundo se aproximando, Pelé enviou carta ao então editor de Esportes do Estadão, Luís Carlos Ramos, para reafirmar que não voltaria a vestir a camisa do Brasil. "Finalmente alguém conseguiu sintetizar em um só artigo toda a minha consciente decisão de não mais jogar pela seleção brasileira e os problemas que com ela estão criando, tentando, através de motivações absurdas, jogar a opinião pública contra a minha pessoa", escreveu Pelé.
Dois dias depois, Florenzano recorda que Pelé recebeu uma carta de João Havelange pedindo mais uma vez que repensasse. "Minha esperança cresce ao recordar suas provas de amor, como cidadão e tricampeão mundial de futebol, aos anseios em que palpita a presença do Brasil", escreveu o mandatário. Pelé rebateu com agradecimentos: "É chegado o momento de mostrar aos brasileiros que posso ser útil ao País em outros campos de atividades, com a mesma dedicação, honestidade e motivação com que sempre defendi a nossa Seleção. Contando com a compreensão de V.Sas., cordialmente."
Os militares ainda não se deram por satisfeitos. Em abril, Pelé foi recebido por dois ministros em Brasília e precisou manter mais uma vez a decisão. O Estadão conta que na ocasião o Rei do Futebol chegou a comentar com amigos que cogitava antecipar sua aposentadoria em abril e não em outubro, como previa. Quando notaram que não teria como fazê-lo participar da Copa da Alemanha, em 1974, Pelé se tornou para muitos um inimigo do Brasil. Durante os jogos do Mundial, motivados também pelas fracas atuações da equipe nacional, familiares de Pelé em Santos chegaram a ser ameaçados.
Pouco depois da viagem de Pelé para Europa, onde estava assistindo a Copa do Mundo, uma nova ameaça contra o jogador começou a surgir nos comentários que se ouviam pelas ruas de Santos: caso o Brasil perdesse os primeiros jogos e saísse do campeonato, a sua casa no canal 6, bairro da Ponta da Praia, seria apedrejada. Pelé não se rendeu.
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