Rio - "Você é solteira?" foi uma das perguntas ouvidas por Mariana* de um técnico da Net, operadora de internet, telefonia e TV a cabo, que fazia uma segunda visita em sua casa, em Florianópolis, em 2012. "Na primeira vez em que ele veio, meu pai estava aqui. Ele foi simpático e prestativo. Depois de uns dias, a internet começou a cair e solicitei outro atendimento. Dessa vez, estava sozinha", disse à BBC Brasil.
Depois de pedir que o funcionário da operadora parasse com as perguntas íntimas, Mariana diz ter sido atacada em seu apartamento. "Ele tentou vir pra cima de mim. Ficava me rodeando pela casa, tentando me agarrar. Empurrei ele e o ameacei, porque tinha facas por perto. Ele saiu, mas ameaçou me ligar e voltar."
Cliente da NET é assediada por um atendente que teve acesso a deus dados
Mariana decidiu compartilhar sua história pela primeira vez depois que a jornalista paulistana Ana Prado, de 26 anos, publicou no Facebook as mensagens que recebeu de um funcionário da Net na última terça-feira.
"Falei com você hoje. Desculpa, mas fiquei curioso por causa da sua voz", dizia o atendente, que, poucos minutos antes, ligou para Ana para oferecer um pacote de serviços.
Ao ser alertado de que a atitude era invasiva, ele respondeu: "Relaxa, tenho apenas o número do seu telefone... nós temos acesso aos dados de todos os clientes (...) Só gravei o número do seu celular no meu".
Após o relato público de Ana, mais histórias de assédios sofridos mulheres e homens vieram à tona. A BBC Brasil ouviu uma dezena de denúncias de clientes das principais operadoras de telefonia do país. Eles vão desde simples contatos não solicitados de atendentes e técnicos através do Whatsapp a casos de assédio sexual e tentativa de estupro.
"Postei isso porque a gente precisa discutir como essas empresas estão lidando com nossos dados e com a nossa integridade física. Cadê treinamento desse pessoal? O treinamento é só pra conseguir vender pacotes?", disse Ana Prado à BBC Brasil.
Em nota, a Net afirmou que está averiguando seu caso e que "tomará todas as medidas cabíveis para apurar, identificar e afastar sumariamente qualquer colaborador ou prestador de serviço que faça uso indevido de informações pessoais, confidenciais e sigilosas dos clientes".
"Todos os prestadores de serviços da companhia estão obrigados contratualmente a assegurar a proteção dos dados dos consumidores e são proibidos de utilizar estas informações para qualquer outro fim. Também ficam cientes das sanções contratuais, cíveis e criminais aplicáveis em caso de descumprimento", disse a empresa.
'Sua voz é linda'
A maior parte de situações do tipo deixam de ser noticiadas porque as vítimas se sentem intimidadas ou consideram que as atitudes não são graves, apesar de invasivas. Uma busca no Twitter e no Facebook revelou diversos relatos — alguns até bem-humorados — de contato pessoal feito por funcionários de operadoras.
Funcionário da NET usa dados de cliente para assediá-la
Em abril de 2014, em São Paulo, um funcionário da Oi escreveu para a publicitária Andressa Jordano, de 23 anos, oferecendo "atendimento personalizado" pelo Whatsapp, mas pedindo que ela não mencionasse isso à empresa. "Ele não deu em cima de mim nem nada, mas bloqueei o cara e mandei mensagem para a Oi", disse à BBC Brasil.
Em novembro de 2014, o publicitário paulistano Pietro Brugnera, de 23 anos, foi abordado após o atendimento por uma funcionária da Vivo. "Sua voz é linda", dizia a mensagem, acompanhada de um coração. Em nota à BBC Brasil, a Vivo afirmou que "os casos mencionados pela reportagem encontram-se em apuração interna e estão totalmente desalinhados com as práticas e valores da empresa" e que possui um canal de denúncias para incidentes de segurança da informação, pelo e-mailcsirt.br@telefonica.com.
Já a Oi disse que "os contatos da companhia com seus clientes são para tratar exclusivamente de assuntos de interesse das duas partes" e que "preserva o sigilo dos dados de seus clientes"."Qualquer desvio pontual que venha a ocorrer no atendimento será apurado pela companhia", afirmou, por e-mail.
Ataques
A maior parte dos clientes descreve cantadas ou tentativas de manter contato, mas, em casos como o de Mariana, que abre esta reportagem, o assédio dos funcionários vai mais longe. Ela fez um boletim de ocorrência e chegou a fazer uma denúncia à Net, mas afirma que a única resposta que recebeu da empresa foi que não seria possível obter dados sobre o homem que foi até sua casa, nem mesmo o número do atendimento.
"Eles passaram a ligação pra várias pessoas e todas respondiam a mesma coisa, mesmo eu explicando a situação. Alguns até pareciam estar duvidando que aquilo tinha acontecido."
A fotógrafa Andressa Araújo, de 27 anos, passou por uma situação semelhante. Em novembro de 2014, um técnico da Net esqueceu uma mala em sua casa, em São Paulo, após o atendimento. Pouco depois, outro técnico foi até lá sob o pretexto de buscar o material.
"Ele chegou na minha casa, fechou a porta e olhou tudo, como se o interesse fosse outra coisa, não os cabos. Avisei que estava tudo bem, e ele insistia em assuntos dispersos. Abri a porta, e ele atendeu o celular, foi em direção à porta e a fechou novamente, como quem estava incomodado com a porta aberta", conta.
Segundo o relato de Andressa, o rapaz disse que a mala "foi esquecida de propósito". "O outro rapaz me pediu para que viesse aqui porque você estava dando em cima dele, aí vim terminar o serviço que ele não terminou", teria dito.
"Abri a porta, corri para o corredor e berrei para ele sair da minha casa. Depois, meu interfone não parava de tocar", afirmou em um post no seu Facebook. "Eu não fiz absolutamente nada a não ser oferecer água pra ele (o primeiro atendente)."
Ao fazer a denúncia, Andressa ouviu da Net que a empresa não se responsabilizava pelo comportamento de funcionários terceirizados. A BBC Brasil detalhou os casos citados nesta reportagem para a empresa. A Net limitou-se, no entanto, a responder sobre o ocorrido com Ana Prado, alegando que está apurando as informações sobre os demais episódios internamente.
Em seu Facebook, Prado disse ter sido informada de que a empresa considera criar um canal específico para estas denúncias.
O que fazer?
Normalmente a primeira opção dos consumidores, o Procon-SP esclarece que, por não se tratar de dano material mensurável, a instituição não pode intermediar este tipo de caso, mas recomenda que o consumidor registre boletim de ocorrência e acione a empresa na Justiça por danos morais. A advogada Sandra Weber, sócia do escritório Patrícia Peck Pinheiro Advogados, especializado em direito digital, explica que a empresa envolvida deve responder pelos atos de seus empregados e pode ser acionada com um pedido de indenização.
"A empresa tem de proteger as informações do cliente e orientar seus funcionários de como elas podem ser usadas. E eles não podem se valer de uma informação interna para fins não profissionais", disse à BBC Brasil.
"Isso vale inclusive para casos de funcionários de empresas terceirizadas, pois o cliente tem uma relação contratual com a empresa principal e pode nem saber que a empresa terceirizada existe."
Weber aconselha os consumidores a preservarem as provas, como o aparelho no qual as mensagens se encontram, para que a polícia possa fazer uma perícia deste conteúdo, ou mesmo cópias da tela com a conversa. Também é possível ir até um tabelião de notas, que olhará as mensagens e fará uma ata notarial, relatando que elas existiram.
"Ainda é importante, quando sofrer a abordagem, não dar margem para que ela continue, bloqueando o contato ou não atendendo as ligações, e faça uma denúncia à empresa responsável", afirma Weber.
"Nestes casos, se não houve a tentativa de obter uma vantagem sexual, como pedir para mandar uma foto em determinada posição ou um vídeo íntimo, talvez não se configure o assédio sexual, mas há um abuso de direito, por estar invadindo a esfera pessoal do cliente, o perseguindo e o importunando, gerando constrangimento e medo", afirma.
A especialista considera que o surgimento de novos casos a partir da primeira denúncia mostram a importância de trazer à tona situações assim. "Isto demonstra que os casos vinham sendo tratados de forma isolada, mas que eles já ocorriam com certa frequência e que, por não virem a público, talvez nem a própria empresa tomava conhecimento de que eles ocorriam."
*Nome trocado a pedido da entrevistada