Maria do Carmo Santos opinião odia  - divulgação
Maria do Carmo Santos opinião odia divulgação
Por Maria do Carmo Santos*
Imagens da invasão do Capitólio norte-americano, sede da Câmara e do Senado Federal, causaram comoção internacional, talvez tão profunda quanto a queda das Torres Gêmeas em 2001. Se este último acontecimento impactou pela imprevisibilidade, já que nunca o solo norte-americano havia sofrido um ataque direto, o mesmo se pode dizer do ocorrido em Washington. Como imaginar que a sede do Poder Legislativo seria tomada por uma horda de arruaceiros, muitos vestidos como para um baile de carnaval, inconformados com a derrota de Trump?
Como isso pôde acontecer? Vistos como guardiões da democracia por boa parte do mundo, os EUA se arvoram como exemplo, alardeando a estabilidade de suas instituições políticas e a consistência da alternância entre Republicanos e Democratas no poder. Não é preciso profundo conhecimento da História dos EUA para entender que, desde a Independência (1776), poderosas tensões sociais, econômicas e étnicas permearam todos os âmbitos da vida da população. Truculência policial contra os negros e imigrantes, imensa população carcerária e espantoso número de população de rua nas cidades mais ricas do país são exemplos disso.
Publicidade
A questão racial foi colocada desde a Independência, mas os dirigentes brancos e proprietários construíram um regime de exclusão e até apartheid racial no Sul do país. Contudo, o “acordo de cavalheiros” entre democratas e republicanos começou a ser ameaçado na década de 1960 por líderes como Martin Luther King, Malcom X e Muhammad Ali. O ativismo de Angela Davis e dos Panteras Negras, que amargaram na prisão a ousadia de desafiar o sistema, mostrou que a paz social baseada no silenciamento de grande parte da população seria insustentável.
A reação a esses movimentos se tornou mais enérgica à medida que a crise econômica de 2008 evidenciava a decadência do modelo socioeconômico. O desemprego e a pauperização de extensas regiões dos EUA e o aumento do número de imigrantes da América Central criaram uma espécie de subcidadãos, os latinos, alvos de hostilidade.
Publicidade
Nesse quadro, percebe-se que as consequências para os norte-americanos não foram só econômicas, mas também psicológicas, dado que parte da população encara negros e latinos como ameaças constante aos grandiosos e tradicionais valores nacionais. O fenômeno social, aliás observável em outros países, projeta grupos inteiros para um passado idílico, exacerba o conservadorismo, o autoritarismo e a violência contra os “culpados” pela instabilidade.
A resistência dos negros ao racismo estrutural e à violência policial, o movimento Black Lives Matter, por exemplo, coloca hoje o tema noutros termos. Não parece mais possível restaurar o apartheid norte-americano. Embora Trump soe para grupos conservadores como uma ajuda do céu, já que encarna o ideal norte-americano (é homem, caucasiano, bem sucedido nos negócios, vida amorosa coroada por mulheres-troféus e, o mais importante, com uma retórica belicosa, xenófoba e “America first”), o agravamento das questões sociopolíticas produziu reações como a de Stacey Abrams, na Geórgia.
Publicidade
A meta de voltar a uma América dos anos 1950, onde o poder dos brancos, o machismo e a misoginia não eram contestados, foi derrotada nas urnas. Para a horda de trompistas, que ignora o sentido de democracia política e social, o respeito às instituições, a busca do diálogo para resolver as questões que envolvem o Bem Comum, a tentativa de olhar a todos independentemente de sua raça e condição social como seres portadores de direitos, invadir o Capitólio é só parte da festa. Para que perder tempo se podemos resolver  tudo à força? Afinal, a supremacia branca, para esses insanos, é algo natural e incontestável. Será que o acontecido no Capitólio é um espelho no qual o brasileiro mirará seu reflexo?
*É professora de História aposentada da UERJ