Gabriel Chalita, colunista do DIA - Divulgação
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por Gabriel Chalita*
Eu voltava da missa da quarta-feira de cinzas, quando caí em dor. Voltava feliz. Padre Antonino tem um jeito humano de nos trazer Deus. Um olhar que une o que o interminável inverno do mundo vem desunindo.

Gosto das músicas e do silêncio. Das explicações e do tempo das esperas. É quaresma. O espaço das pedras que ferem precisa ser convertido em jardins que acolhem.

Chorei os meus erros e fiz promessas de vida nova. Quero limpar meu coração para a Páscoa. Quero vida em mim. E foi assim que deixei a Igreja e caminhei passos tranquilos para minha casa.

Foi quando Julia disse a solidão que a incomodava desde a morte do marido. Resolvi mudar o caminho e fui com ela conversando sobre despedidas e sobre a fé. E, então, vi o que não queria ter visto. Nadir, meu marido, beijando uma mulher dentro de um carro.

Tropecei em mim mesma. Ele me viu. Disse nada e foi caminhando sem ela. Passou ao meu lado e se foi. E ela deu partida no carro.

Entrei na casa de Julia e desabei. Ela achou estranho que eu não soubesse. Talvez eu soubesse. Ela falou do quanto ele era grosseiro. Eu concordei, ampliando. Nos modos e nos pensamentos.

Às vezes, tenho vergonha. Outras, tenho vergonha de mim por gostar dele. E gosto.
Fechei um pouco os olhos no sofá da minha amiga. Meus sentimentos barulhavam o frio que me consumia, quando pensava em viver sem ele. Quem era a mulher que estava com ele? Veio entregar em casa o seu brinquedo e parou em uma outra rua para que eu não visse? De onde estavam vindo?

Julia sugeriu que eu decidisse. Eu disse que não conseguia. Se sonho, é com ele que sonho. Quando acordo, é a imagem dele que me desperta. Que vejo. Que viajo nos dias em que ele não estava. Sim, porque ele já me deixou. Mais de uma vez.
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"Até quando?", foi a pergunta que caiu de Julia. "Até quando?".

Vitor, meu filho, não suporta o pai, que tem vergonha do filho. O pai queria um filho macho como ele. O filho queria um pai amoroso como ele. E minha falta de ação em nada ajuda. O filho lamenta as piadas preconceituosas que o pai conta. E o meu riso. Mas eu não rio de concordância. Rio de nervoso, de tristeza, de medo de não ter mais ninguém para amar.

Julia oferece que eu durma em sua casa. Agradeço e enfrento as pedras nas ruas poucas que me separam da minha. O pó dos instantes vai me dar forças para fazer o correto. A dor da vida não inclui o desmanchar da alma.

Vou me refazer. É quaresma. Quero vida, em mim, na Páscoa.
*É professor e escritor