O destino da carta
Abri o envelope. Desacreditei. Heleno enviou uma carta. Temi ler. Feridas cicatrizadas podem, ainda, dizer textos de dor.
Abri o envelope. Desacreditei. Heleno enviou uma carta. Temi ler. Feridas cicatrizadas podem, ainda, dizer textos de dor.
Sentei calmamente. Olhei outros envelopes. Contas corriqueiras. Propaganda de uma loja. Convite de inauguração. Nem sei descrever muito bem. Foi como se um caixa de dores antigas fosse, novamente, aberta.
O dia era cinza. Folhagens descontroladas ao sabor de um vento que veio antes do outono. Faz dois anos que tudo se deu por encerrado. E, agora, a carta.
Heleno foi o homem que me jurou um amor sem pausas. Que me recolheu das ingenuidades. Que me ofertou, pela primeira vez, um beijo que, na primeira vez, não me disse nada. Achei estranho o encontro das línguas, acho que por erro meu nossos dentes se encontraram. Não gostei. Gostei depois. E, depois, amei com todo o meu corpo o homem que me fez poemas de amor nos gestos e nos dizeres.
Casamos e vivemos anos lindos de entrega. Tenho fotografias de dias que sucediam dias com cenas banais, difíceis de esquecer. O horário do café da manhã. Sua chegada em casa, antes do anoitecer. O sexo. Fui gostando da geografia do seu corpo, e ele foi entendendo os mistérios do meu. Tínhamos a nossa música. O costume de deixar uma vela acesa na mesinha ao lado da cama, enquanto nos encontrávamos. O jeito de dormirmos abraçados.
Tudo isso terminou em um início de semana, em um início de uma explicação de que era de liberdade que ele precisava. De que o casamento era uma gaiola. Que não era para ele.Chorei e implorei algum pensamento. Fiz a lista de tantos dias em que nos juramos amor. Usei a nossa música para acender não a vela do quarto, mas a vela do compartimento dos nossos sentimentos. Ele ouviu e disse que iria embora.
Amigas me disseram que era a crise dos 15 anos de casamento. Pesquisei e não entendi. Que crise? Brigas se resolvem com conversas. Desistência é palavra forte demais para o tema do amor.
Eu o procurei algumas vezes. Ele respondeu solícito e frio. E, friamente, disse que não queria me fazer sofrer. Que sabia que eu o amava. E, quando eu perguntava se ele não mais me amava ou se o amor havia acabado, ele apenas se levantava para sair.Nos vimos em um casamento de amigos. Ele foi frio no abraço. Um estranho. Chorei no caminho de casa. Chorei na chegada em casa e dormi sonhando com ele.
Conheci algumas companhias. Soube encontrar divertimentos. Protegi de mim mesma os pensamentos que me fingiam raciocinar. E, então, conheci Geraldo. Faz um mês. Ainda não sei se teremos futuro. Ainda faço comparações que desdizem o correto de uma possível outra história de amor. Sou uma mulher que desperta interesses, certamente. Demorei a compreender isso. Heleno ofereceu tanto desprezo no fim de tudo que ficou difícil voltar a acreditar que eu possuía algum atributo que merecesse receber amor.
O primeiro dia em que sai com Geraldo foi um dia medroso. Que intenções teria ele? Como saber o tempo de permanência das palavras feitas convites de fazer história? Não seria melhor viver de portas trancadas a correr riscos? Venci o medo com a dignidade de quem decide que uma vida sem amor é insossa. E eu sou uma mulher nascida para salgar de alegria o mundo. Faz tão pouco tempo, mas já tenho usado parte do meu tempo para pensar nele e para desenhar um outro trajeto no peregrinar da vida. Uma parte do tempo ainda é de Heleno, contra a minha vontade. Quem me dera decidir em quem pensar? Não tenho esse poder. Ninguém tem. Mas tenho o poder de dizer ao pensamento que sei que, um dia, ele pensará o certo e limpará de mim as dores que tanto me feriram.
Se não comando o que penso, comando o que faço. E é isso o que penso em fazer agora. Não. Não vou abrir a carta. Não vou ler o texto. Não vou abrir as portas para permitir que quem me ofereceu tanta dor possa me oferecer alguma mensagem, inda mais por carta, meio romântico de dizer algum amor.
Se há algo que aprendi lendo e aprendi vivendo é que não se ajoelha suplicando amor. Os joelhos são símbolos de respeito ao sagrado. Só é sagrado o amor que é recíproco. Migalhas não alimentam almas. Se há algum lampejo de esperança de voltar a amar, que seja com quem não me feriu, com quem não desistiu de mim. Nunca fui gaiola, sempre fui alimentadora de voos encantados. Hoje, eu sei disso. Escrevi isso em mim com as dores da dor do abandono. Dor ensinadora de que o futuro existe.
Rasguei a carta e acendi a vela para queimar qualquer chance de voltar atrás na decisão de nunca mais autorizar as humilhações dos que dizem 'não' a uma história de amor.
Se precisar, vou chorar e, depois, tomar um banho leve e, levemente, me preparar para jantar com Geraldo. O resto, o tempo faz!
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