Sonhei um sonho ou um pesadelo, talvez. Sonhei um cemitério, um cemitério de ideias. Sonhei vozes vociferando inverdades. Arroubos de violência dizendo nada. Andares sem motivo. Sem lugar dizedor do para onde ir. Olhares fixos em visão nenhuma, a não ser a do cemitério.
No pesadelo, os outros eram os outros e nada significavam. As vozes que se ouviam abafavam outras vozes. Era a vitória do grito. No pesadelo, o cuidado da cidade estava a cargo do enterrador de ideias.
Era um coveiro. Não o que exerce o ofício nobre de devolver à terra o corpo que na terra viveu. O corpo sagrado carregador de uma história carregada de amores e cicatrizes. O coveiro do pesadelo desqualificava qualquer ideia que pudesse cuidar da cidade. Sua decisão era enterrar as ideias.
Acordei do sonho. Acordei com um certo alívio. Pesadelos têm alguma razão de ser? O que eu vi durante o dia dormitou em mim e fez imagens durante a noite?
Eu vi guerras matando gentes. E vi gentes criando guerras. Eu vi agressões desmentindo a inteligência. E vi aplausos à ausência da inteligência. Eu vi a orla dos insensatos ocupando espaços e dizendo caminhos. Eu vi caminheiros caminhando sem saber.
Eu vi telas roubando olhares que olhavam humanos. Eu vi silêncios desnecessários aos dizeres do outro. Eu vi braços cruzados anunciando egoísmos. Eu vi a mim mesmo com algum desânimo. Porque também sou pedra, além de alma. Porque também desisto tantas vezes. Porque também sou inverno.
Mas é na primavera que escrevo o que foi o pesadelo. É na primavera que acordo aliviado por ter acordado. É na primavera que abro as janelas e que vejo a humanidade ainda humana. Ainda há mulheres e homens cuidando. Ainda há semeadores semeando e flores desafiando a aridez dos tempos. Ainda há ações bonitas de generosidade e beijos de amor.
Um beijo de amor tem tanto significado. Um beijo de amor é o encontro de almas que desligam o medo e a acomodação. Um beijo de amor é um convite ao cômodo sagrado onde moram o sentir e o sonhar.
A noite do pesadelo já se foi. Há outras noites esperando para nascer. E outros dias, também. E o sonho a ser sonhado de primavera. Não sou dos que negam os pesadelos. Já disse sobre eles. Tampouco sou dos que desacreditam do acordar.
Acordemos o acorde da paz. O acorde bonito que diz a canção dos acordos. A canção e o silêncio. O silêncio do pensar antes do dizer. O dizer cuidadoso e verdadeiro. Que o acordo defina que os cemitérios sejam apenas lugares bonitos de pensarmos no mistério. E que o mistério da vida prossiga autorizando os nascimentos, inclusive os nascimentos das ideias. Principalmente, as ideias de amor.
Nas ideias de amor, moram os sonhos mais bonitos. Aqueles que podemos sonhar acordados. Acordemos!