O sonhar de Hortênsia
Hortênsia é nome de flor e é nome da mulher, mãe de muitos filhos, que morava na parte alta da cidade onde nasci.
Hortênsia é nome de flor e é nome da mulher, mãe de muitos filhos, que morava na parte alta da cidade onde nasci.
Hortênsia havia adotado os filhos que faltavam para chegar a doze. Era essa a conta que eu, nem sei o porquê, fazia. Ela dizia o quanto gerou. “Gerei todos, são todos meus”. O coração gera nascimentos.
Da casa de Hortênsia, via-se a vista mais bonita da cidade. O sol se despedindo entre as montanhas. O rio, naquele tempo, limpo. O pontilhão que, ao longe, parecia sem os defeitos causados pelo abandono.
Na casa de Hortênsia, ouviam-se histórias, ensinamentos. “Quem passa um dia sem um gesto de amor não sonha”. Ela disse e eu perguntei para minha mãe. Minha mãe, ocupada com os fazeres da casa, respondeu um “deve de ser”. Eu, tentava, então, não terminar o dia sem um gesto de amor. Como morávamos perto de um asilo e eu ia sempre para ouvir histórias, para ajudar, resolvia o ensinamento. Quando não, buscava outro fazer para não deixar de sonhar.
Havia um cego que morava perto de casa e eu ficava à espreita para, se necessário, ajudar a atravessar a rua. Havia cachorro de rua que eu alimentava. Havia passarinho que meu irmão pegava e punha na gaiola. E eu soltava. Sem dizer. Só dizia à Hortênsia, perguntando se o bem que fazemos aos animais também conta na soma do amor que garante o sonhar. Ela dizia que sim.
Na parte baixa da cidade, morava Vera. Que era rica de posses e de impaciências. Que visitava os dias com considerável porção de amargura. Uma vez, jogávamos bola em um campo de terra perto de sua casa. A bola entrou no seu jardim e ela furou, com uma faca, dizendo grosserias. Para mim, decididamente, Vera não sonhava.
Em tempos de Natal, fazíamos uma campanha para doar alegrias aos velhos do asilo e às crianças de um ofarnato. Na pequena cidade, batíamos de casa em casa. Íamos em grupo. Eram crianças querendo sonhar. Vera abriu a porta sem abrir o sorriso. Interrompendo o nosso explicar da necessidade dos que viviam no asilo, ela gritou um grito seco: “Que morram”.
Morreu Vera não muito depois. Havia pouca gente na despedida. Eu fui com minha mãe. Hortênsia também foi e eu disse o que Vera havia dito. Hortênsia não era mulher de prosseguir os assuntos que não eram de bondade, “Disse sem pensar, ela sofreu muito, entende?”.
Eu não entendia. Entendo, hoje, vários significados daquela frase explicadora da vida. Um dia sem amor é um dia que poderia ser descartado. É um dia em que não caminhamos o caminho que afasta o frio. Um dia em que falamos a fala ausente, porque sem escuta.
Escuto esses tempos passados com um sorriso bom. Achava Hortênsia linda. Os cabelos brancos devidamente penteados. Os óculos que ampliavam o que a alma via, a voz que falava o bem e que organizava o nosso sentir.
Viveu até ser centenária. Se penso nela e sobre ela escrevo, prossegue vivendo. E eu prossigo pensando se tenho ou não cumprido os gestos cotidianos de amor. Afinal, sou dos que acreditam nos sonhos. Os sonhos que nos embalam no bom dormir. Os sonhos que nos acordam para a necessidade inegociável de jardinarmos o mundo com sementes de amor.
Dos natais da minha infância, as lembranças mais bonitas que prosseguem são as dos encontros. Antes dos presentes em casa, éramos presentes para o velhinhos e as crianças, sem presentes.
É por isso que, depois da ceia, sonhávamos. Com hortênsias e outras flores, com balas que adoçam e não matam - as guerras ficam sempre na parte baixa. Com corações que compreendem que podem ser manjedouras e gerar nascimentos. Com passados que ensinem o presente a crer no futuro. Afinal, é quase Natal.
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