Adailton Medeiros (à esquerda) e Jonathan Barroso posam à frente do letreiro apagado do Ponto CineCleber Mendes/ Agência O Dia

Rio - Desde o início da pandemia da covid-19, Jonathan Barroso deixa o cinema mais premiado do Brasil praticamente impecável para uma sessão que não sabe quando vai acontecer. Aos 33 anos, o gerente do Ponto Cine, em Guadalupe, é o único funcionário que restou em meio à crise e responsável, junto com o fundador e dono Adailton Medeiros, de 59, por manter o local todo em ordem após quase três anos sem atividades. Com uma dívida quase impagável acumulada durante o período de portas fechadas, o estabelecimento inaugurado em 2006, mas já tradicional do subúrbio do Rio, busca parceiras com órgãos públicos ou a iniciativa privada para voltar a exibir filmes diariamente e encerrar esse longo drama.
Adailton, que é meteorologista, mas dedicou a maior parte da vida a levar cultura ao subúrbio carioca, ostenta orgulhosamente na fachada do Ponto Cine as placas de premiações recebidas ao longo dos anos, entre elas a de sala de cinema digital, a primeira popular a ser construída no Brasil e segunda no mundo. Já o letreiro, parte principal da decoração, está apagado porque a energia foi cortada por falta de pagamento. Na lanchonete, os potes de pipoca que custavam R$ 7 servem apenas de enfeite.
Os preços convidativos ajudam a reforçar o caráter popular do "cinema que mais exibe filmes brasileiros no mundo", nas palavras do próprio fundador. Os ingressos custavam a partir de R$ 4,50 (meia) antes do fechamento, com uma peculiaridade: são exibidas apenas películas nacionais, desde lançamentos pouco conhecidos a sucessos de bilheteria como "Minha Mãe é Uma Peça 2", sempre com quase todos os 76 lugares ocupados. Agora, Adailton não tem nem sequer as certidões necessárias para reabrir.
"Montar uma equipe não é fácil, e eu priorizei manter a equipe. Pensei que a pandemia ia passar rápido. Não passou. Chegou uma hora que tivemos que pegar grana emprestada em banco e me endividei. Tínhamos vários patrocinadores, mas com o cinema fechado, como é que os caras vão investir? Aí estou até agora tentando reabrir o cinema. É o único no Brasil a exibir só filmes brasileiros. Somos formadores de cinéfilos para a cinematografia nacional", conta o escritor e dramaturgo.
Nas contas de Adailton, a quantia necessária para reativar o Ponto Cine durante todo o ano de 2023 é R$ 1,8 milhão contando com o pagamento de dívidas, reabertura do cinema, cursos e demais projetos. No entanto, ainda não surgiram investidores interessados. "Não é nem 10% do salário do Neymar", brincou.
A dupla não sente falta somente das centenas de pessoas que passavam pela sala de cinema durante o dia, mas também dos diversos projetos em que o Ponto Cine está envolvido, entre eles os cursos de Fotografia, Fotografia Cinematográfica, Danças Urbanas, Gestão de Projetos Culturais, Interpretação, Interpretação para Crianças e Direção Audiovisual, todos em parceira com o Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Há também o Cine Literário, projeto para doação de midiatecas a escolas públicas de todo o país, em kits com 100 DVDs de filmes brasileiros baseados em obras de literatura, televisão, blu-ray e muito mais. Verbas da Ancine e de patrocinadores bancavam o alto custo - cerca de R$ 250 mil. O trabalho rendeu ao cinema o título de patrimônio cultural do estado Rio de Janeiro.
"Gostaríamos de ter um apoio do município. Nunca tivemos verba municipal. A gente sempre trabalhou através de leis de incentivos fiscais. Nesses 16 anos, a gente fazia um papel que o Estado nunca fez. É um projeto de uma envergadura muito grande. Ele mudou a cara de Guadalupe", argumentou Adailton.

Importância para o bairro
Formado em Produção Audiovisual, Léo Barros mora a poucos metros do Ponto Cine e chegou a trabalhar por dez anos no local. Ao participar de grande parte do processo de crescimento do cinema na região, ele foi testemunha de uma grande mudança impulsionada pelo estabelecimento no bairro, que passou a ter ruas mais movimentadas, novos comércios e até um Polo Gastronômico. Para Léo, Guadalupe passou por uma "revolução" digna das telonas.
"Sou morador de Guadalupe, então presenciei e participei de toda a transformação que o Ponto Cine promoveu no bairro. Foi uma revolução, uma transformação muito significativa. Como é um bairro cercado por comunidades, a vida aqui em Guadalupe durava até 5h ou 6h da tarde, porque a galera tinha medo de ficar nas ruas desertas. Com a chegada do Ponto Cine, em uma galeria comercial, muda o panorama. O bairro era noticiado por violência e passou a ser noticiado nos cadernos de cultura", revelou Léo, que vê agora o processo contrário acontecer.
"O comércio mais formal da Marques de Macedo já passou a sofrer um pouco. Na galeria onde fica o Ponto Cine, com o fechamento do cinema, outros estabelecimentos também fecharam porque não tem mais o mesmo movimento. Se não me engano, há apenas um restaurante funcionando. Uma lanchonete, uma pizzaria e uma sorveteria também fecharam. Estamos retrocedendo", analisou.
Fã do projeto e entendedor de cinema, Léo exalta também o papel social do Ponto Cine para a sociedade, sobretudo em projetos que participou ao longo dos dez anos de trabalho ao lado de Adailton. O ProSocial Cinema, por exemplo, amplia o acesso à cultura para estudantes da rede pública e desperta interesse pela produção nacional.
"O Ponto Cine é a democratização do acesso ao cinema brasileiro. Além da sala e da exibição de filmes brasileiros, o Adailton desenvolveu a promoção social do cinema, um projeto para o qual, através das leis de incentivo, conseguimos um patrocinador para levar alunos e professores para o cinema. Todos os profissionais da rede pública assistiam filme de graça. No fim de semana, os alunos voltavam para assistir com os pais. Estávamos formando plateia para o cinema nacional", diz o cineasta.

Honraria mais recente
O reconhecimento mais recente pelo trabalho realizado pelo Ponto Cine foi o diploma Heloneida Studart, concedido pela Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Janeiro (Alerj) e voltado para ações culturais na periferia. A indicação partiu de uma moradora de Guadalupe que também trabalhou no estabelecimento: a analista de mídia Danielle Fernandes, que também lamenta a atual situação do cinema.
"Indiquei ao prêmio porque as políticas públicas de hoje, vanguardistas, o Ponto Cine já fazia há muito tempo, que é incluir pessoas de diversos tipos em prol do social. Não é só um lugar para desenvolvimento de emprego. É desenvolvimento em todos os sentidos. O Ponto Cine tem todo um marco na minha vida como na de todos que moram aqui na região. Quando você retira um equipamento cultural desse de uma região, você a empobrece, porque outras pessoas deixam de visitar, frequentar", explicou.
A cerimônia de para entrega do diploma aconteceu no final de novembro, na Alerj, com a presença de Adailton. Apesar da gratidão pela honraria, ele aproveitou para lembrar da atual situação do cinema e pedir ajuda a agentes públicos para voltar a ter pleno funcionamento. Recentemente, o projeto recebeu uma visita da secretária de estado de cultura e economia criativa Danielle Barros, mas a tentativa de atrair investimento público foi em vão.
"É a primeira sala digital popular do país e a segunda do mundo; já exibiu mais de 600 filmes para mais de 800 mil pessoas, mas hoje está fechada e teve a energia elétrica cortada. É um projeto premiado, que deslocou o bairro das páginas policiais para as colunas de cultura. Perdemos patrocinadores e não conseguimos o apoio de órgãos de cultura do estado e do município nos últimos anos", reforçou Adailton durante seu discurso.