PAUTA ESPECIAL - Terreiro de umbanda Axé Kwê Cejá Gbé, ja foi atacado 8 vezes por intolerância religiosa em Jardim Imbariê, Duque de Caxias. Na foto: A mãe de santo Conceição D'Lissa.Pedro Ivo/ Agência O Dia

Rio - A Constituição garante a todos a liberdade de culto. No entanto, muitos brasileiros praticantes de religiões de matriz africana sabem que os desafios ainda são muitos para alcançar o que está escrito na nossa Carta Magna. Na semana do Dia da Liberdade de Cultos Religiosos (celebrado neste sábado), Doné Conceição d' Lissá, sacerdotisa responsável pelo Kwê Cejá Gbé relembra os oito ataques ao seu terreiro, em Duque de Caxias, Baixada. Na última vez, em 2014, um incêndio atingiu o interior do barracão, deixando sequelas na estrutura até hoje. Em todos os casos, Conceição fez o Boletim de Ocorrência, mas não descobriram o autor ou motivo do crime. Por morar perto, sua casa também já foi alvo de intolerância, o que a fez implantar sistemas de alarme para poder defender-se.
Mesmo com todo trabalho de conscientização, de acordo com a Coordenadoria Executiva da Diversidade Religiosa do Rio de Janeiro, em 2022 houve uma média de 5 a 10 casos por semana registrados. 


"O meu barracão sofreu oito situações de ataque. Tivemos três carros queimados, pelo menos três incêndios e dois episódios de tiros, que foram disparados para dentro do terreiro. Também já dispararam dentro da minha casa, porque moro na mesma rua", revela Conceição, de 61 anos. "É claro que existia uma ligação, uma relação com esses ataques, e eu registrei todas as vezes. Foram feitas investigações, enfim, sempre com autoria e motivação não confirmadas. Não teve uma determinação de fato. A última vez foi um incêndio de grandes proporções em 2014 e que até hoje me causa uma série de problemas na estrutura do imóvel. Por causa do tempo, da chuva, do fogo, a laje do meu barrão está cedendo e corremos o risco de ter que derrubá-la".

Militante do movimento negro e de mulheres, ela explica que não tem condições financeiras para consertar o que foi prejudicado no fogo, mas afirma que não pretende sair do local nem tão cedo. "Eu toquei o candomblé e continuei resistindo bravamente, mesmo depois dos acontecimentos. Outra pessoa no meu lugar não teria aguentado e desistiria da religiosidade e até mesmo do lugar. A minha militância é a minha maneira de conseguir dar visibilidade a essa resistência. Se eu me omito, me calo, vai parecer que estou compactuando com eles. Não estou fazendo nada de errado, não preciso me esconder".
Na última quinta-feira, o presidente Lula sancionou a lei que cria o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, a ser comemorado anualmente no dia 21 de março. O decreto, publicado no Diário Oficial, é assinado também pelas ministras da Cultura, Margareth Menezes, e da Igualdade Racial, Anielle Franco.

Márcio de Jagun, coordenador da Coordenadoria Executiva de Diversidade Religiosa do Município do Rio, acredita que nunca houve liberdade religiosa no Brasil, no entanto, ultimamente o país está mudando alguns aspectos. "Primeiro lugar, é importante dizer que a liberdade religiosa nunca aconteceu de fato nesse território brasileiro desde a chegada dos colonizadores. Há 500 anos, quando eles chegaram aqui para se estabelecer, não houve em momento algum uma tentativa sequer de agregar, de entender, de respeitar, tanto as religiosidades que já existiam quanto aquelas que foram chegando à medida dos séculos".

Durante muito tempo, apenas uma religião foi a principal do Brasil: o catolicismo. "O país sempre foi católico, até então não há problema em relação a isso. A laicidade é um regime escolhido pela república brasileira em 1891, mas hoje não sabemos praticar isso. O que é ser um país laico, um estado laico, uma escola, supremo, laico?", questiona Márcio.

Atualmente, as lutas para conscientizar a população acerca da religião e no combate à intolerância religiosa levou o país a ter uma percepção diferente sobre a diversidade. Para Márcio, hoje em dia há marcos precisos. "Temos a delegacia especializada, um estatuto estadual, temos plano estadual de liberdade religiosa, conselho estadual, municipal, ou seja, estamos avançando significativamente. No entanto, precisamos formar cidadãos e cidadãs que entendam que a laicidade faz parte dos direitos humanos. Esse processo ainda é lento, mas pode ser acelerado, solidificado, desde que as empresas, a iniciativa privada, abrace a liberdade religiosa como princípio da democracia".

Ainda segundo Márcio, o Brasil vive um paradoxo hoje em dia. De um lado há o estado laico, com normas jurídicas que protegem a liberdade religiosa, por outro, ainda há o ataque àqueles que escolheram seguir outras religiões, principalmente as de matriz africana. "Violências absurdas acontecem diariamente. Tanto as mais sutis quanto as hostis, desde preconceitos, com olhares e comportamentos, até pedradas, xingamentos e depredações de templos, como terreiros. A questão racial está intrínseca na intolerância religiosa. Não se rejeita logo a religião afro, mas a origem delas".
Ivanir dos Santos, babalawô, doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e militante contra a intolerância religiosa, ressalta que há poucas iniciativas concretas e objetivas do poder público para inibir o problema. "Por mais que estejamos incentivando as pessoas a irem na delegacia registrar qualquer tipo de ataque, procurarem a especializada, poucos desses casos têm virado inquérito para investigação e, consequentemente, não vira processo. Acaba que o autor fica impune. Há uma necessidade de ação da segurança pública, por mais que tenha sido importante a criação da especializada. Além disso, é preciso falar sobre as religiões africanas nas escolas públicas e privadas também".
Cartilha de conscientização 
Uma "Cartilha Contra a Intolerância Religiosa", fruto de uma parceria entre as secretarias de Estado de Educação (Seeduc) e de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, foi lançada no último mês. O objetivo é que ela ensine sobre as religiões nas escolas e seja introduzida em sala de aula já neste ano letivo, esclarecendo dúvidas dos alunos e combatendo o preconceito religioso.

Segundo as estatísticas elaboradas pela Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos no ano de 2020, o segmento religioso mais atacado é o de religião africana, representando 91,7% dos casos. A pesquisa mostrou também que os casos são mais frequentes em locais de maior concentração dos adeptos e templos mais atingidos, sendo eles a Zona Oeste do Rio, Nova Iguaçu, na Baixada, e São Gonçalo, na Região Metropolitana.
Leis municipais em vigor 
Atualmente, no município do Rio, estão em vigor algumas leis para combater a intolerância religiosa. São elas:
Lei 7710/2022, que estabelece diretrizes básicas para as ações de enfrentamento de intolerância religiosa e a implementação de cultura de paz no âmbito do Município e dá outras providências.

Lei 7689/2022, que dispõe sobre as orientações necessárias à instituição de um Programa de Campanha Permanente e Continuada de Mobilização para a Cultura de Paz e Respeito à Liberdade Religiosa e dá outras providências.

Lei 7594/2022, que institui o Selo Empresa pela Liberdade Religiosa e dá outras providências.

Lei 7239/2022, que altera a Lei nº 7.049, de 2021, que institui o Conselho Municipal de Defesa e Promoção da Liberdade Religiosa – COMPLIR – e dá outras providências.

Lei 7049/2021, que institui o Conselho Municipal de Defesa e Promoção da Liberdade Religiosa – COMPLIR – e dá outras providências.

Lei 5773/2014, que dispõe sobre a educação contra o preconceito nas escolas do Município do Rio de Janeiro.

Lei 5675/2013, que estabelece diretrizes para o turismo religioso no Município do Rio de Janeiro.

Lei 5565/2013, que proíbe inquirir sobre a religião do candidato em questionários de emprego, admissão ou adesão a empresas públicas ou privadas, sociedades, clubes e afins e dá outras providências.

Lei 3507/2003, que pune com desclassificação as agremiações carnavalescas que praticarem vilipêndio ou escárnio a valores religiosos, e dá outras providências.

Lei 775/1985, que autoriza o ingresso, nos hospitais da rede municipal, a ministros religiosos (pastores, rabinos ou outros), solicitados para ministrar assistência religiosa a enfermos, na forma que menciona.

Lei 7690/2022, que determina que motoristas de carros de aplicativos não poderão recusar o transporte de passageiros por razões políticas, religiosas, raciais ou por orientação sexual, no âmbito do Município do Rio de Janeiro.
Projetos atuam no combate à intolerância religiosa e ao racismo
O Instituto Onikoja atua há mais de dez anos promovendo atividades socioculturais inclusivas e uma de suas missões é usar a herança cultural africana como transformação social. "Não apenas para inclusão, mas como forma de enfrentamento ao racismo étnico, racial e religioso. São oficinas de capoeira, percussão, samba de roda, crossfit, culinária, artesanato, todas permeadas com roda de conversa sobre cidadania", explica Humbono Rogério, sacerdote de matriz africana e fundador e presidente do Instituto Onikoja. "Tudo isso é muito importante para falarmos sobre direitos humanos e combater o racismo, promovendo o legado da cultura africana", finaliza.