Cais do Valongo, declarado patrimônio da humanidade pela Unesco em 2017Pedro Ivo/ Agência O Dia

Rio - Previstas para terem sido atendidas até 2019, as exigências da Unesco em relação à conservação, manutenção e gestão do Sítio Arqueológico do Cais do Valongo, na região do Porto, ainda não foram cumpridas. Considerado patrimônio da humanidade pelo órgão em 2017, o local é o único vestígio material da chegada de negros escravizados à América. Entre 1811 e 1831, estima-se que tenham desembarcado na região cerca de um milhão de pessoas provenientes, em sua maioria, do Congo e de Angola. Com a mudança no governo federal, a expectativa é de que as determinações sejam, enfim, atendidas.

"O sítio arqueológico não está em risco iminente, mas como é um espaço aberto, e está abaixo do nível do mar, sofre com as intempéries, como alagamentos, o que provoca o deslocamento de pedras e pode descaracterizar o local. Nos últimos anos, o Estado brasileiro virou as costas para o espaço. Agora, esperamos avançar com as obrigações da Unesco", afirma o procurador da República Sergio Suiama.

Dentre as exigências estão a instalação de um comitê gestor com participação da sociedade civil, constante limpeza e manutenção do sítio e a criação do Centro de Interpretação do Sítio Arqueológico, do Memorial da Herança Africana no Brasil e do Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana (Laau). Esses equipamentos, explica Suiama, devem ser instalados no Galpão Docas Pedro II, que fica em frente ao Cais do Valongo, e é também um espaço de memória. Erguido na década de 1870 pelo engenheiro negro André Rebouças, não utilizou mão de obra escravizada em sua construção.

"O galpão é um símbolo de superação dos negros em relação à escravidão", diz Suiama.

O galpão hoje está sob responsabilidade da Fundação Palmares, e guarda, em caixas acondicionadas em contêineres, o acervo de 1,3 milhão de peças históricas encontradas nas escavações das obras do Porto Maravilha. O espaço sofre com problemas de infraestrutura, como rachaduras, falta de energia elétrica e goteiras, além de pichações nos tijolos originais da área externa.

Já em relação ao Cais do Valongo, a falta de sinalização e conservação adequada, além iluminação própria e explicações mais detalhadas sobre o local, também são um problema.

"Eu sei da importância do local, mas não em profundidade, e desconheço ainda mais a história do galpão. Não há quase explicação por aqui. Essa região deveria ser mais valorizada pelo poder público, inclusive em relação ao turismo, mas sinto que há uma certa anestesia cultural por aqui", diz o estudante de artes Jonatas Moreira, de 23 anos, que visitava a região, na última quinta-feira, para tirar fotos.

Para o estudante Tarcísio Oliveira, de 25 anos, que passava pela região com colegas da faculdade de serviço social da Uerj, a falta de atenção para a região significa um apagamento da memória dos negros no Brasil:

"Eu vejo isso como um projeto proposital para que nossa herança afro-brasileira fique velada, escondida".

Já o turista francês Antoine Seignez, de 35 anos, que visita o Rio pela segunda vez, fez uma comparação com seu país de origem:

"Na França, tem placas por todos os locais. Às vezes até mesmo supervalorizando os espaços, tornando-os mais importantes do que realmente são".

Acervo exposto no Muhcab

Parte do acervo de peças históricas acondicionadas no Galpão Docas Pedro II está em exposição no Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (Muhcab), na Rua Pedro Ernesto, na Gamboa. São relíquias como figas de madeira e osso, brincos, anéis de piaçava, cachimbos e miçangas. 
"Muitos desses objetos são de proteção pessoal do corpo. Quando chegavam ao Cais, os negros eram obrigados a se despojar deles. É impressionante como depois dos aterramentos e tentativas de soterrar a história, essas peças, algumas minúsculas, ainda foram encontradas", diz Leandro Santana, diretor-geral do Muhcab.
Respostas para as exigências da Unesco
O Iphan informou que a nova diretoria retomou as tratativas para a recriação do Comitê Gestor do Cais do Valongo, dissolvido em decreto presidencial em 2019. Segundo o órgão, o comitê terá participação da sociedade civil e de instituições vinculadas ao território da Pequena África. O Iphan disse ainda que está elaborando medidas para a valorização, conservação, proteção e gestão do espaço e do Galpão Docas Pedro II. Questionada sobre a recuperação da infraestrutura do galpão, a Fundação Palmares não respondeu até o fechamento desta matéria. 
Sobre o Laau, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade explica que o projeto prevê reserva técnica e espaço expositivo das peças do acervo, cuja manutenção é feita por empresa especializada. E que ele será criado após reforma do galpão e implantação do centro de interpretação do Valongo pelo governo federal.
Já em relação à conservação do Cais do Valongo, a Companhia Carioca de Parcerias e Investimentos (CCPar), ligada à prefeitura, informa que o projeto de nova sinalização, iluminação cênica e novo guarda corpo para o Cais do Valongo está em fase final de aprovação no Iphan. E que equipes da Comlurb e da Secretaria de Conservação mantêm rotina de limpeza e manutenção do entorno regularmente.