Afinal, objetos envelhecem, fotos desbotam e papéis amarelam, mas o nosso coração sempre dá um jeito de nunca tirar dos trilhos a grande razão das nossas vidasArte: Paulo Esper
Nos trilhos
Era manhã de quinta-feira pré-Carnaval quando saí de Caxias, na Baixada, rumo ao Largo do Bicão, na Vila da Penha. O destino era uma loja de tapeçaria onde minha mãe comprava cortinas sob medida para casa. Sempre a escutei falando sobre modelos e bandôs — aquelas peças que encobrem os trilhos, rentes ao teto, dando um melhor acabamento. Também me lembro de suas idas às antigas casas de tecido: minha mãe, filha de costureira, conversava com os vendedores sobre panos enfestados (dobrados ao meio em todo o seu comprimento) e por aí vai...
O fato é que já fazia um tempo que eu queria um blackout para a janela do meu quarto, na tentativa de evitar que os raios do sol me acordassem muito cedo neste verão do Rio de Janeiro. E lá fui eu rumo ao Largo do Bicão. De carro, peguei a Avenida Brasil, entrei em Irajá e logo cheguei ao meu destino final. Havia uma vaga para estacionar bem em frente à loja. Logo perguntei pelo senhor que havia me atendido na véspera, ao telefone: era o gerente. Ele havia me orientado a tirar foto do trilho, por onde corre a cortina, medir a largura da janela — sabendo que precisaria de um blackout um pouco maior para dar um certo franzido — e ainda contabilizar a altura. Peguei, então, a trena no armário do meu pai e fiz os devidos cálculos.
Cheguei à loja com as anotações e não demorei a escolher. Na verdade, me alonguei mais na tentativa de recuperar as lembranças das vezes em que havia estado naquela mesma loja com a minha mãe. Talvez ninguém ao meu redor tenha compreendido por que fiz questão de clicar o metro usado pelos vendedores para calcular o tamanho dos tecidos. Curiosamente, logo na primeira vez, sem os óculos, eu jurei ter lido as seguintes palavras no objeto: "Tecidos para recordação". Mas bastou olhar novamente para me dar conta de que a minha mente havia capturado o que o meu coração queria entender. Na verdade, o que se lia era: "Tecidos para decoração".
No fim das contas, comprei o blackout e também uma nova cortina. Somente no dia seguinte pela manhã, peguei a escada, tirei a peça antiga do lugar e comecei o trabalho de colocar, gancho por gancho, o tecido que decora as nossas janelas físicas e memórias afetivas. "Sua mãe gostava de fazer isso aí", comentou o meu pai, ao passar pela porta do meu quarto. Logo retruquei, bem-humorada e com certa dificuldade para a tarefa, que acabei não finalizando naquele momento: "Não é possível que ela curtisse colocar as cortinas nos trilhos".
Mas a minha mãe fazia isso mesmo: de tempos em tempos, colocava essas peças da casa para lavar e as devolvia às janelas. Ali, no meu quarto, enquanto recapitulava aquelas lembranças, reparei na ação do tempo no ganchinho da antiga cortina. Parecia enferrujado, corroído.
Era mesmo hora de dar vez ao novo, confirmando que a vida é esse fluxo constante entre o que chega e o que se despede no nosso caminho. Em algum momento, já lutei muito contra isso. Hoje, no entanto, memórias como essas correm com leveza pelos meus pensamentos. Afinal, objetos envelhecem, fotos desbotam e papéis amarelam, mas o nosso coração sempre dá um jeito de nunca tirar dos trilhos a grande razão das nossas vidas.
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