Hoje, também escuto e interrompo quando os outros estão falando, depois de muitos anos ficando apenas quietinha na cadeira do salão ou da vidaArte: Kiko
(Re)cortes da vida
Hoje, quando ela finaliza o trabalho, digo o quanto o meu cabelo está mais bonito e leve — mesmo que muita gente não entenda como três dedinhos a menos de comprimento tenham esse poder. Mas eu passei a revelar a alegria de estar satisfeita
Curiosamente, reativei os pensamentos sobre os ciclos da vida ao reencontrar a profissional que cuida dos meus cabelos e que reabriu recentemente a sua agenda de atendimentos após o nascimento de sua filha. Enquanto cortava as minhas madeixas, ela me falava sobre a importância de respeitar o tempo dos primeiros meses da maternidade. É ali que se inicia um elo importante com o bebê, ela me explicava. Em algum momento, o nosso papo enveredou por signos e pela maturidade de não se apegar tanto a eles como uma sentença de vida. Eu mesma, uma canceriana nata, tenho brincado com a dramaticidade na tentativa de driblá-la. Colocar luz e riso sobre ela é uma forma de não deixar que me desmorone.
De nascença, eu tenho mesmo o apego com as pessoas que me cercam. É assim para cortar o cabelo. A mesma profissional cuida das minhas madeixas há pelo menos cinco anos, a ponto de ter acompanhado algumas mudanças minhas — e não foram apenas nos fios, cada vez mais curtos.
Nunca me esqueci do que ela me disse certa vez: "Antigamente, eu só sabia que você havia gostado do corte quando retornava ao salão". Afinal, eu simplesmente me fechava para os encontros da vida. Hoje, quando ela finaliza o trabalho, digo o quanto o meu cabelo está mais bonito e leve — mesmo que muita gente não entenda como três dedinhos a menos de comprimento tenham esse poder. Mas eu passei a revelar a alegria de estar satisfeita.
De bebês para signos, aquela nossa conversa no salão, entremeada pelo barulho do secador, chegou a uma constatação que parece inevitável: o ano está voando! Ela me contou que teve a mesma sensação durante os nove meses de gestação. E assim eu confirmei que os tempos realmente mudam a cada fase da nossa vida. Ainda comentei ter reparado no horário em que ela havia respondido a uma das minhas mensagens, pouco antes de o dia raiar — e logo pensei nos seus afazeres de mãe de primeira viagem. Assim como também percebi quando ela compartilhou nas redes sociais sobre os seus passos cada vez mais acelerados na sua volta para casa.
É por isso que nem sempre o tic-tac do relógio dita os nossos ciclos, por mais que tenhamos uma temporada coletiva da vida. É difícil colocar a nossa jornada em uma cronologia única e padronizada, até porque a estrada é única e nunca linear: tem tristezas e alegrias, cansaço e vigor, desânimo e novas energias...
Aliás, até duvido de quem não tenha alternâncias e ambiguidades. Eu, por exemplo, canso dentro da minha própria resiliência; me sinto forte com a minha fragilidade e fico nervosa na minha calmaria. Hoje, também escuto e interrompo quando os outros estão falando, depois de muitos anos ficando apenas quietinha na cadeira do salão ou da vida.
É muito bom saber que os tempos mudam, assim como os cortes de cabelo e a maneira como demonstro que gosto deles. Por outro lado, sigo repassando a vida nos meus pensamentos, como sempre fiz. Acredito que, ao mesmo tempo, posso ser a mesma, mas também diferente do que quando nasci.
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor.