Confusão teve início quando as vítimas saíam de um show no Casarão do FirminoReprodução/Google Maps

Rio - Uma modelo relatou a sucessão de violências que ela e as irmãs, que preferem não se identificar, sofreram na madrugada da última sexta-feira (19). As três mulheres, duas delas transsexuais, foram agredidas fisicamente e ofendidas verbalmente na saída de um show de samba no Casarão do Firmino, na Lapa, no Centro do Rio. As fotos das vítimas foram compartilhadas nas redes sociais e elas agora temem pela própria segurança. O caso é investigado pela 5ª DP (Mem de Sá).
A confusão teve início na saída do show, quando uma delas foi empurrada por homem em uma fila e a modelo o empurrou de volta. Nesse momento, as três, que estavam com outra amiga, foram levadas para fora à força por seguranças. "Arrastaram a gente como se a gente fosse sacos de lixo, a gente tinha acabado de ter uma noite extremamente divertida, a gente não entendeu o porquê de toda aquela injustiça", disse.
Do lado de fora, uma discussão teve início. Quando as irmãs tentaram embarcar no carro de aplicativo que haviam pedido para ir embora, o motorista teria se recusado a levá-las, por estarem envolvidas na briga e passado a filmar a confusão. Uma das mulheres, então, agrediu o homem, que, junto com os seguranças e vendedores ambulantes, teriam passado a incitar a violência contra o trio e as chamaram de "vagabundas". 
Em entrevista ao DIA, o motorista de aplicativo relatou que trabalhava no momento que uma garrafa de vidro danificou seu veículo, em frente ao estabelecimento. Ele saiu do automóvel para gravar a cena com objetivo de acionar o seguro. A filmagem mostra que uma mulher tenta tirar seu celular e, em seguida, ele aparece com um ferimento no rosto. O homem disse também que levou um soco e se sentiu acuado. 
As três caminharam até a esquina do Casarão, ainda sendo alvo dos xingamentos. Um ambulante se aproximou delas e disse que só não bateria na mulher cisgênero. "Eu não bato em mulher, em homem eu bato", teria dito, mas acabou a agredindo com socos quando ela o chamou de covarde, momentos em que as irmãs tentaram contê-lo. 
"Foi revoltante um homem daquele tamanho batendo nela, ele, obviamente, tinha muito mais força que ela. É tanta covardia e eles amam bater no peito e querer ser o 'machão', valentão, mas é muito fácil ser para cima de mulher, porque eles sabem que a gente não têm mais força que eles e eles podem fazer o que quiser", afirmou a modelo, que contou ainda que nesse momento, outros homens, entre os seguranças do estabelecimento e ambulantes, apareceram e a briga se tornou generalizada. "Pode espancar que é tudo homem", um deles teria falado. 
Durante a confusão, a modelo acabou caindo e continuou recebendo chutes de diversos homens. "Eu só pensava: 'Deus, faça com que eu e minhas irmãs saiamos daqui vivas'. Um pouco depois, algumas mulheres chegaram perto delas e conseguiram as colocar dentro de um táxi, mas o grupo as seguiu e impediu que o veículo saísse, tirando a chave da ignição. "Parecia uma cena de The Walking Dead (seriado de TV dos Estados Unidos), eu estava dentro de um carro tentando fugir de vários zumbis, eu só via os braços deles tentando agredir a gente de qualquer forma". 
Depois de alguns minutos, elas desistiram de ir embora no táxi e foram levadas pelas mulheres até uma viatura da Polícia Militar próxima. Com uma das irmãs desacordadas, a modelo abriu a porta da viatura e a colocou no banco de trás, mas os policiais teriam gritado para ela sair e chegaram a apontar as armas. Somente após elas explicarem a situação, eles disseram que se elas estavam feridas deveriam ligar para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e que só poderiam levá-las para a delegacia, o que foi aceito pelo trio. 
Na delegacia, segundo a mulher, mais momentos de violência ocorreram. "Quando as pessoa veem duas travestis negras pedindo ajuda, elas entram em todos os estereótipos possíveis para poder deturpar a história e fazer com que (falem): 'Elas fizeram alguma coisa, elas causaram isso'. Toda hora a escrivã tentava deturpar, colocar que a gente estava em casa noturna, mas a gente estava no samba, colocar alguma conotação de que nós éramos prostitutas. Toda hora ela colocava em dúvida as coisas que a gente estava falando", desabafou. 
Dois seguranças do Casarão e o motorista de aplicativo também foram ouvidos na distrital e as vítimas passaram por exame de corpo de delito. A modelo disse que ainda sente dores no pescoço, costelas e na cabeça e ficou com escoriações, bem como as irmãs. Uma delas também teve o nariz quebrado. Para a mulher, o trio foi vítima do machismo e da violência de gênero. 
"Não sei como eu consegui ficar de pé, porque eu fui atropelada pelo machismo, com certeza. O machismo é um caminhão sem escrúpulos. Um homem se fortaleceu ali no outro, ainda mais depois que invalidaram nossa 'mulheridade', eles criaram mais energia de ódio para poder despejar sobre a gente. Eram homens que não tinham nada a ver com a situação, foram homens que se fortaleceram entre eles para acabar com as nossas vidas. Três mulheres contra vários homens, uma cena muito covarde", lamentou. 
A modelo também agradeceu ao apoio que recebeu do grupo de mulheres. "Eu perdi a fé na masculinidade, porque na feminilidade, na força que as mulheres podem ter entre si, na união, eu ainda tenho fé e é nisso que eu vou me apegar, porque foram mulheres que lutaram para salvar as nossas vidas, foram mulheres, gritando como leoas, que nos defenderam, gritando contra eles".
A Polícia Civil informou que "os envolvidos foram ouvidos e os agentes buscam testemunhas e imagens de câmeras de segurança da região". Procurado, o Casarão do Firmino afirmou que está sendo alvo de fake news. "O samba havia terminado quando um grupo, já do lado de fora, começou a arremessar garrafas em direção à grade onde ficam os colaboradores. Dois seguranças foram atingidos e, mesmo feridos, prestaram depoimento em sede policial, sendo encaminhados em seguida para exame de corpo de delito". 
O estabelecimento ressaltou também que é um "espaço de resistência, alegria e amor" e que "repudia com veemência todos os tipos de violência. Com a mesma força, combate qualquer mentira criada para ocultar os verdadeiros provocadores e culpados dessa confusão".