A profissional já ajudou muitas mulheres que vivem fora do paísTomaz Turra / Divulgação

A violência doméstica está em todo o mundo e causa danos psicológicos aos envolvidos nesse processo doloroso que precisa de muita terapia e de advogados para que haja, de fato, um basta. Na segunda-feira (27) foi exibido o documentário Convenção de Haia: Mães em Luta, na Globo News, com produção e reportagem de Jerusa Campani, como publicou o colunista Sidney Rezende no Informe do DIA, na quinta-feira (23). O filme tem como tema a violência doméstica e a subtração internacional de crianças e quem participa é advogada Janaína Albuquerque, coordenadora jurídica da organização Revibra Europa, que oferece assistência para mulheres migrantes vítimas de violência doméstica no exterior.De acordo com dados do Ministério da Justiça, foram recebidos 276 pedidos de regresso de crianças levadas para o Brasil pela Autoridade Central entre 2021 e 2024 e, segundo a Advocacia Geral da União (AGU), considerando todas as ações levadas à Justiça desde 2018 (em andamento e encerradas), os estados que mais recebem crianças subtraídas de outros países foram: São Paulo (45 casos), Rio de Janeiro (20), Paraná (15), Minas Gerais (13) e Santa Catarina (12).
O assunto está sendo discutido pelo Supremo Tribunal Federal em duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI 4245 e ADI 7686) e no Congresso Nacional, onde tramita no Senado um projeto de lei (PL nº 565/2022) da Câmara dos Deputados, o qual visa à inclusão explícita da violência doméstica como uma exceção capaz de desobrigar as autoridades brasileiras de determinarem a restituição de crianças a países estrangeiros.
Além de estar no documentário, Janaína participa do livro "Alienação Parental Sob uma Perspectiva Crítica: Discussões Psicossociais e Jurídicas”, da Editora Appris, que será lançado no dia 3 de fevereiro, às 19h, na Livraria da Travessa em Brasília, onde ela nasceu. A publicação tem a organização de Josimar A. Mendes e Marília Lobão Ribeiro e reuniu diversos(as) autores(as) das áreas do Direito, Psicologia e Serviço Social para apresentar uma abordagem ética e técnico-científica sobre alienação parental
Em sua contribuição, no capítulo 16, Janaína Albuquerque explica que a teoria da alienação parental tem sido inadequadamente aplicada em processos de subtração internacional de crianças, desviando o foco dos melhores interesses das crianças para os conflitos entre genitores.
Segundo Janaína, a Convenção da Haia de 1980 surgiu em um cenário muito diferente dos dias de hoje. "A pretensão dos idealizadores desse tratado era de delimitar a competência internacional para as ações de guarda e criar um mecanismo por meio do qual as crianças pudessem ser prontamente restituídas ao país onde residiam habitualmente".
De acordo com a profissional, inicialmente eram os pais que mais subtraíam os filhos, cruzando fronteiras para buscar jurisdições que decidissem de forma mais favorável para si. Desde 1990, os números se inverteram e, consoante as estatísticas publicadas pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCH), atualmente, 3 em cada 4 subtrações são cometidas por mães.
História dolorosa

A empresária  do ramo de flores Mabel Santos, mãe de dos filhos, uma de 6 e outro de 10, é uma das personagens do documentário, mas somente sua voz  aparece. O sofrimento dela é algo quase que insuportável. Conheceu seu marido aos 22 anos, se apaixonou, saiu do Brasil, onde teve o primeiro filho, e foi morar nas Ilhas Cayman, no Caribe, Panamá e EUA, onde concebeu a caçula em 2018, por desejo do marido, que é da Marinha.
O que seria um grande sonho da família margarina virou um grande pesadelo. Mabel passou por uma série de agressões física e verbais, como estrangulamento, deboches e até uma internação no hospício, além de suportar diversos adultérios desde o início da relação. Ela tentou se divorciar três vezes do marido, que era Diácono da Igreja Baptista, mas não conseguiu porque era impedida de trabalhar fora pois ele dizia que tinha tudo em casa e não tinha muitos amigos, ou seja, vivia uma dependência emocional dentro do ciclo da violência doméstica.
A gota d´água aconteceu quando o então marido passou a espancar o casal de filhos. "Numa das vezes ele bateu tanto no meu filho mais velho com a fivela do cinto, deixou trancado sem comida e água até o outro dia, porque tirou nota 9 e não 10. E me ameaçou também. Dias depois arrombou a porta do quarto com uma faca na mão. Nessa hora eu pensei que eu não teria mais como morar naquela casa e com a ajuda do presidente da igreja e sua esposa, para quem contei toda a minha história, eu consegui fugir para o Brasil em outubro de 2021. Ele pagou as passagens e me deu dinheiro até para a comida".
Desde então, os dois brigam na justiça pelos filhos. Assim que chegou ao Brasil, Mabel, hoje aos 35 anos, esteve na Deam da Mulher da sua cidade, no Rio Grande do Sul, contando tudo que aconteceu no tempo em que estava casada, inclusive uma passagem após uma briga por não querer fazer sexo no início de janeiro de 2020.
"Ele me deu um tapa forte na bunda e me lembro de ver sangue no meu nariz, me jogou no sofá me falando todos os tipos de palavrões. Perdi a memória, não lembrava dos meus filhos, fiquei paralisada e parei na cadeira de rodas, tive intensas dores na cabeça e não sei o que aconteceu entre 21h e uma hora da manhã daquele dia. Uma amiga chegou a 1h da manhã depois de ele ligar e pedir para ela vir ficar com as crianças pois precisava me levar ao hospital, ela me viu deitada no chão cheia de xixi. Ele estava tentando me reanimar, fezendo respiração boca a boca e massagem cardíaca. Os paramédicos chegaram e me levaram para o hospital. Ele disse que salvou minha vida. Eu não falava, não andava. Só fui lembrar do episódio em meados de junho e vi que a história não era bem essa. Hoje vejo que ele é um monstro, um narcisista".
Segundo Mabel, o processo de Haia começou em 2021. "Tive ajuda da Luiza Brunet e da Revibra com a fundadora da instituição, Juliana Wahlgren", diz ela, que tem a guarda das crianças no Brasil. "Em setembro eu venci a segunda instância e as crianças permanecem no Brasil. Na semana que cheguei aqui ele foi na Corte Americana e deu queixa como Sequestro Internacional de Menores e me mandou uma selfie dizendo que eu pagaria caro pelo que fiz e iria me arrepender muito. Além disso, mentiu na Corte americana dizendo que não tinha conhecimento dos processos de violência no Brasil e estou sendo multada em R$ 200 mil por dia pela Corte Americana".
Mabel esclarece que é importante saber o que é residência habitual: "Se você viver seis meses em outro país que não o seu de origem você não pode voltar com o seu filho, no caso o Brasil, sem a autorização do pai porque pode configurar sequestro", diz ela, mas quando envolve violência doméstica os casos devem ser analisados um a um.
Em entrevista ao jornal O DIA, a advogada e coordenadora jurídica da organização Revibra Europa, Janaína Albuquerque, fala mais a respeito do assunto.
O DIA: Qual a importância do documentário para as mulheres de uma forma geral?

Janaína Albuquerque: O documentário, idealizado por Jerusa Campani, foi uma excelente iniciativa para divulgar o tema e promover maior conscientização. Muitas famílias internacionais não sabem o que é a subtração internacional e do que exatamente se trata a Convenção da Haia de 1980. É fundamental que as mães migrantes, e principalmente aquelas que se encontram em situação de violência doméstica, compreendam as consequências de um processo de subtração antes de tomarem a drástica decisão de retirar os filhos do país sem o consentimento do pai.
O sistema não está apto a protegê-las e os desfechos dessas histórias são absolutamente devastadores. Além disso, creio que o documentário também sirva um papel importante no sentido de sensibilizar o público e até mesmo as autoridades para que entendam o quanto é difícil passar por uma situação de violência em um país estranho, sem falar a língua local, sem conhecer as leis e sem conseguir obter qualquer tipo de ajuda.

O DIA: Quando a senhora se refere a subtração de menores, muita gente pode entender também como tráfico de crianças. Como podem ser diferenciada essas posturas?
Janaína Albuquerque: O tráfico de pessoas é um crime por meio do qual pessoas são transportadas ou transferidas para o fim de exploração, enquanto a subtração internacional refere-se, geralmente, à hipótese de um dos genitores levar a criança para outro país sem o consentimento do outro. Existem diferenças importantes entre as duas questões. A subtração internacional não é considerada como crime pela legislação brasileira. Ademais, o propósito não é de explorar as crianças. Na realidade, em muitos dos casos, a pretensão do genitor ou genitora que subtrai é de protegê-las.

O DIA: A violência doméstica cresce de forma avassaladora em todo o mundo. Como o governo poderia melhorar esse caos? Sabemos que a medida protetiva pode até ajudar, mas não resolve.
Janaína Albuquerque: Mudar a Convenção é uma tarefa quase impossível devido a uma série de burocracias, porém, o Brasil tem se posicionado de maneira forte nos fóruns de discussão internacionais e emprendido esforços para melhorar essa situação.
Existem, hoje, duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade sob análise do Supremo Tribunal Federal (ADIs 4245 e 7686) que pedem a interpretação da Convenção à luz da Constituição. As decisões sobre esses processos influenciarão todas as esferas do sistema brasileiro, incluindo decisões judiciais, leis e até mesmo a atuação do Poder Executivo. Além disso, existe um projeto de lei (PL 565/2022) em trâmite no Senado Federal que busca a ampliação da aplicação da Convenção, no Brasil, para incluir a violência doméstica como uma exceção à repatriação das crianças trazidas para o país de maneira explícita.

O DIA: A senhora acredita que essa lei, se aprovada, vai, de fato, beneficiar as crianças?
Janaína Albuquerque: Sem sombra de dúvidas. Existem duas grandes dificuldades de emplacar a defesa da violência doméstica nos processos de subtração. Primeiramente, porque essa não é uma situação prevista na Convenção e a orientação é para que essas alegações sejam afastadas. E, em segundo lugar, devido à dificuldade de obtenção de provas no exterior.
A lei brasileira é infinitamente mais avançada em termos legais e de estrutura para a proteção das vítimas de violência doméstica. No exterior, é praticamente impossível conseguir uma condenação ou sequer uma medida protetiva. Conseguir registrar uma ocorrência já é uma grande vitória, entretanto, nem sempre é possível obter uma cópia da queixa.
As mulheres migrantes são frequentemente lidas pelo sistema de forma discriminatória e essas circunstâncias são ainda piores sob um recorte de classe e raça. Assim sendo, se o texto substitutivo do PL for aprovado, outros tipos de provas mais factíveis deverão ser levados em conta pelos juízes, como laudos médicos ou psicológicos e relatórios elaborados por organizações dedicadas à comunidade migrante.

O DIA: Sei que a senhora também irá participar de um livro sobre o tema. Como vê publicações com essa temática? Pretende escrever um solo?
Janaína Albuquerque: Uma publicação de qualidade, com respaldo científico, sobre o tema, definitivamente está entre os meus planos. Ainda existe uma carência de dados e pouca produção acadêmica evidenciando as dificuldades que as mães migrantes e vítimas de violência sofrem antes, durante e depois de subtraírem os filhos. Nesse momento, entretanto, estou focada na advocacia e no ativismo, fazendo o que posso para promover avanços dentro e fora do Brasil. Esse é um projeto que me exigirá extrema dedicação e creio que as experiências que estou tendo nesse momento me darão as ferramentas para produzir uma obra diferenciada e mais madura.

O DIA: Como orientar pais e mães a não praticarem alienação parental?
Janaína Albuquerque: A alienação parental é uma teoria anacrônica e misógina que já devia ter sido rechaçada há muito tempo. O Brasil vai no contrafluxo da comunidade internacional quando insiste em aplicá-la. Em muitos países, como é o caso recente do Reino Unido, já existem direcionamentos oficiais para abolir a sua arguição nos processos de família. A teoria foca na culpabilização dos genitores, quando a manipulação da criança deveria ser interpretada como uma violência contra ela e como uma das formas de abuso do poder parental. A questão é que a alienação parental, seja em processos domésticos ou internacionais, é frequentemente levantada para desqualificar a palavra das vítimas. É a contra arguição mais simples. Alega-se que as acusações de violência são falsas e deliberadamente utilizadas para prejudicar a outra parte.