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A opção pelo desentendimento

O resultado mais concreto revelado até agora pela CPI da Covid-19 é a dificuldade dos políticos para unir forças e resolver juntos um problema que ameaça a população inteira

Por Nuno Vasconcellos
Rio - O avanço da CPI criada pelo Senado para discutir os erros do governo no combate à pandemia da Covid-19 tem escancarado um problema que já era visível no Brasil muito antes desse vírus terrível produzir sua primeira vítima. Trata-se da superficialidade com que os problemas mais sérios são enfrentados pelas autoridades e da incapacidade crônica que todos parecem ter para construir um consenso mínimo em torno de qualquer tema relevante. Tudo, no fundo, se resume a um embate entre oposição e situação — sempre com os olhos voltados para o calendário eleitoral.
É triste, mas é a mais pura verdade: se as pessoas que acompanham os debates da CPI se sentarem diante da TV sem ter escolhido previamente o lado pelo qual têm simpatia, terão uma dificuldade enorme de saber quem está certo e quem está errado. No fim do dia, o debate não leva a lugar algum. O que se vê no plenário são políticos que elevam o tom e, diante das câmeras de TV, esbravejam contra pessoas que integram ou já integraram a administração federal. Reproduzem as acusações que já faziam antes da CPI ser instalada e não tomam uma única providência capaz de beneficiar a população.
Do outro lado, a situação não é diferente. O que se vê são ministros e ex-ministros criando uma nova versão para fatos já conhecidos. E se esquivando, como sempre aconteceu nas CPIs que houve antes desta, de assumir as responsabilidades mais óbvias por suas ações e omissões diante do problema investigado. Perdido e confuso entre um lado e outro está o cidadão, espantado diante de tudo o que está acontecendo e dando sinais cada vez mais claros de cansaço diante desse tipo de espetáculo.
SISTEMA CAPILARIZADO
Em meio a tantas evasivas e a tantos discursos irados, alguns fatos chamam atenção. O mais espantoso de todos, certamente, é o descaso do governo diante da oferta da farmacêutica Pfizer, que em meados do ano passado se propôs a entregar 70 milhões de doses de sua vacina ao Brasil. Conforme se sabe agora, entre os dias 14 de agosto e 12 de setembro do ano passado, a empresa americana fez mais de uma dezena de tentativas de negociar com o governo brasileiro até que, no final das contas, desistiu.
A pergunta é: por que uma empresa como a Pfizer, uma das pioneiras no desenvolvimento de um imunizante eficaz contra o coronavírus, deu tanta atenção no Brasil? Por que insistiu tanto para o país adquirir seu produto? A resposta é simples: a capilaridade e a abrangência do SUS são conhecidas e respeitadas no mundo inteiro e o serviço, por mais críticas que receba, é visto como um modelo a ser copiado até pelos países mais desenvolvidos que o nosso. Na visão da farmacêutica, essa estrutura permitiria que a vacina chegasse ao destino num brevíssimo intervalo de tempo e a população brasileira, logo estaria imunizada. Se isso tivesse acontecido o Brasil, ao invés de ser visto como um pária, hoje seria visto como um exemplo para o mundo.
O governo, é evidente, errou em virar as costas para a oferta da Pfizer e não avançar numa negociação que poderia assegurar aos cidadãos o acesso rápido à vacina salvadora. A questão é que o Congresso, que hoje acusa o governo de omissão, também se omitiu e não pode ser considerado um exemplo de conduta. Na hora decisiva os parlamentares também não se moveram em defesa das providências que poderiam ter acelerado a imunização.
Ao invés de passar praticamente todo o ano de 2020 em busca de medidas que facilitassem o acesso dos estados e dos municípios aos cofres federais, os deputados e senadores poderiam ter proposto leis que facilitassem a importação de medicamentos em casos de uma emergência como a pandemia. E é justamente na ausência de um marco legal que lhe desse segurança para avançar com o negócio que o governo se apega para dizer que não poderia ter aceitado a oferta da farmacêutica.
A verdade é que o Congresso preferiu deixar todas as providências necessárias a cargo do Executivo, mesmo sabendo que o governo não era simpático à ideia da vacinação. É nesse momento que um outro ponto delicado ganha destaque: a suposta crença do governo na tese da "imunidade de rebanho" defendida, entre outros, pelo deputado e ex-ministro Osmar Terra, que também é médico.
Por essa visão, a exposição ao vírus e a contaminação acelerada aumentaria a resistência da população e os sobreviventes se tornariam imunes à doença. Sem a intenção de entrar no debate sobre o obscurantismo que se esconde atrás dessa proposta, ela revela uma das faces mais desanimadoras do governo: a tendência a nada fazer e esperar que a situação se ajeite por si mesma.
NÚMERO ASSUSTADOR
O fato é que, se todos tivessem falado a mesma língua desde o início e tomado as providências necessárias para lidar com a pandemia, talvez o número de contaminados não tivesse prestes a alcançar os 16 milhões. E a quantidade de mortes não tivesse chegado à marca trágica de quase 500 mil pessoas — que será batida nas próximas semanas. O número é assustador: significa o mesmo que riscar do mapa, em apenas um ano, a população inteira de uma cidade como Niterói.
Se as vacinas da Pfizer tivessem chegado ao Brasil no fim do ano passado e a campanha de imunização tivesse começado em larga escala ainda no mês de dezembro, milhões de vidas poderiam ter sido poupadas. Isso mesmo! Entre o dia 17 de março de 2020, quando foi registrada a primeira morte por Covid-19 no país, e o final do ano passado, o Brasil registrou, em números redondos, 200 mil mortes pela doença. Cerca de 300 mil vítimas, portanto, contraíram a doença num momento em que a vacinação já avançava pelo mundo e o país ainda perdia tempo com debates estéreis em torno da pandemia.
Esse fato não é mencionado com a intenção de imputar aos integrantes da CPI ou aos demais parlamentares parte da culpa pela devastação que a pandemia tem causado no país inteiro. O objetivo é apenas mostrar, com números dramáticos, o efeito trágico da falta de entendimento. Que houve erros, todos sabemos. Que o governo poderia ter escolhido um caminho diferente e salvado milhões de vidas, também sabemos.
A pergunta sem resposta até este momento é: o que deve ser feito daqui por diante para que o problema seja resolvido, a vacinação avance e a população deixe de conviver com esse perigo? Isso, ninguém respondeu até agora. Ainda há tempo para somar os esforços e concentrá-los na busca de mais vacinas e no combate à pandemia. Não custa tentar, antes que seja mais tarde do que já é.
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