Professores brasileiros convivem com frequentes censuras e violênciasTomaz Silva/Agência Brasil
O dado consta da pesquisa inédita A violência contra educadoras/es como ameaça à educação democrática, realizada pelo Observatório Nacional da Violência Contra Educadoras/es (ONVE), da Universidade Federal Fluminense (UFF), em parceria com o Ministério da Educação (MEC).
Participaram do levantamento 3.012 profissionais da educação básica e superior do ensino público e privado de todo o país.
O coordenador da pesquisa, professor Fernando Penna, da UFF, explicou à Agência Brasil que o trabalho teve como foco principal violências ligadas à limitação da liberdade de ensinar, tentativa de censura, perseguição política, embora tenha envolvido também a possibilidade de o professor registrar caso de violência física, embora esse não fosse o foco do relatório.
De acordo com Penna, o objetivo do trabalho foi identificar violências no sentido de impedir o educador de ensinar uma temática, de usar um material, ou seja, perseguição política.
“É mais uma censura de instituições em relação aos professores. E não são só instituições. Entre os agentes da censura, estão tanto pessoas dentro da escola, quanto de fora, figuras públicas”, informou.
Censura
A pesquisa mostrou um percentual alto de professores vítimas diretas da violência. Na educação básica, o índice registrou 61%, e 55% na superior. “Na educação superior, foi 55%, um pouquinho menor, mas, ainda assim, está acima de 50%”, destacou Penna.
Entre os educadores diretamente censurados, o levantamento constatou que 58% relataram ter sofrido tentativas de intimidação; 41% questionamentos agressivos sobre seus métodos de trabalho; e 35% enfrentaram proibições explícitas de conteúdo.
Os educadores também relataram casos de demissões (6%), suspensões (2%), mudança forçada do local de trabalho (12%), remoção do cargo ou função (11%), agressões verbais e xingamentos (25%), e agressões físicas (10%).
Temáticas
“E quando ele foi entregar isso à diretora da escola, ela disse para ele que na escola não ia ter doutrinação de vacina”.
A pesquisa identificou ainda professores proibidos de tratar, na sala de aula, temas como o da violência sexual, em que alerta o aluno sobre o fato desse tipo de violência ocorrer dentro de casa.
“E é depois de algumas aulas na escola sobre orientação sexual, gênero, sexualidade, que esse jovem que tem uma violência naturalizada acontecendo no espaço privado denuncia o autor disso”, explicou Pena, ao ressaltar a importância de o tema ser tratado no ambiente escolar. “Mas essa temática, que é a discussão dos temas envolvendo gênero e sexualidade, é que os professores mais indicaram como sendo o motivo da violência que eles sofreram”.
O professor disse ainda que o estudo deixa claro que essa violência não impacta só os educadores, mas a liberdade de ensinar e a liberdade de aprender. “Estudantes estão deixando de discutir temáticas vitais para a sua formação”, acrescentou.
Outro exemplo de tema óbvio, que é motivo de questionamentos de pais contra professores de ciência, é o da teoria da evolução. Alguns preferem que se discuta dentro da escola o criacionismo e não a teoria da evolução. “Então, professores que tentam fazer o trabalho de levar o conhecimento às crianças e adolescentes acabam sendo demitidos, transferidos”.
A proporção de professores que passaram diretamente por esse tipo de violência ficou em torno de 49% a 36%. A maior parte dos educadores disse que o episódio ocorreu quatro vezes ou mais.
Segundo o levantamento, os temas que motivaram o questionamento à prática do educador foram liderados por questões políticas (73%), seguidos por questões de gênero e sexualidade (53%), questões de religião (48%) e negacionismo científico (41%).
Polarização
“Os dados configuraram um gráfico que revela que a violência contra educadores sobe a partir de 2010 e tem um pico em 2016, em 2018 e em 2022, que são os anos do ‘impeachment’ e de duas eleições presidenciais”, destacou Penna, frisando que essa “tensão política que o país vive está, infelizmente, entrando nas escolas”.
Agentes da violência
A pesquisa identificou que são os próprios membros da comunidade educativa interna que estão levando essa violência para dentro da escola, liderados pelos profissionais da área pedagógica (57%), familiares dos estudantes (44%), estudantes (34%), os próprios professores (27%), profissional da administração da instituição (26%), funcionário da instituição (24%) ou da secretaria de educação (municipal ou esta- dual) ou reitoria, no caso das universidades (21%).
Perseguição
A perseguição a educadores foi relatada como extremamente impactante para 33% dos educadores tanto na vida profissional como pessoal, e bastante impactante para 39% na profissão e também no lado pessoal. A consequência em muitos casos foi que grande parte dos professores que vivenciaram esses casos de violência acabaram deixando de ser educadores, o chamado apagão dos professores, confirmou Penna.
“Foi uma das ferramentas de manipulação política desse pânico moral usado pela extrema direita nos anos recentes”, afirmou.
Impacto
Quando perguntados sobre mudanças que esses eventos trouxeram para o seu cotidiano de trabalho, a maioria dos educadores afetados citou insegurança e desconforto. “O desconforto com o espaço de trabalho foi o terceiro maior impacto da censura citado pelos respondentes (53%). Isso levou 20% dos participantes a mudarem de local de trabalho por iniciativa própria.
“As pessoas estão com medo de discutir temas. Estão com medo de fazer o seu trabalho como elas foram formadas para fazer e de acordo com seus saberes da experiência. Aí você está falando que o dano para a sociedade é gigantesco. Porque, os professores estão com medo de discutir temas, alguns estão sendo prejudicados e não podem discutir temas, por exemplo, no caso do gênero”, afirmou Penna.
Vigiados
“Muitas vezes, esse educador precisa do emprego, mas pode estar sendo ameaçado ali no território onde ele vive”. Penna argumentou que é preciso reconhecer que esse é um problema da sociedade brasileira. “A gente está vivendo em uma sociedade na qual educadores têm medo de falar e de trabalhar de acordo com seu saber profissional”.
Ele indicou que todos os profissionais que trabalham com a produção de um conhecimento seguro, ou seja, que podem desmascarar mentiras, teorias da conspiração, ‘fake news’, são vítimas.
“Tanto que, em 2023, surgiu o Observatório Nacional da Violência Contra Educadoras/es, que é quem fez a pesquisa. Mas também surgiu o Observatório Nacional da Violência Contra Jornalistas, que são outra categoria que sofreu muito durante o governo Bolsonaro. Uma perseguição incrível”.
Regiões de destaque
O dado não surpreendeu o coordenador da pesquisa. “Tanto que um dos estados que teve mais respondentes no Sul do país foi Santa Catarina, onde a gente sabe de muitos casos de violência. É um estado onde a extrema direita impera”, afirmou.
A sondagem apurou que em todas as cinco regiões brasileiras 93% dos educadores tiveram contato com situações de censura, sendo que 59% passaram diretamente por essa situação, 19% souberam que aconteceu com alguém e 15% ouviram falar.
Proteção aos professores
A pesquisa, até agora, gerou um banco de dados que ainda tem muitos cruzamentos para serem feitos, manifestou o coordenador.
“A gente pode fazer análises de estados separadamente. A segunda etapa da pesquisa, que está em curso, e de entrevistas. Do total desses de professores que responderam, a gente vai escolher 20 pelo país para entrevistar”, anunciando que serão divulgados outros relatórios vinculados a essa pesquisa inicial.
No relatório completo que está sendo preparado, o Observatório sugere a criação de uma política nacional de enfrentamento à violência contra educadores, como resposta do poder público. Essa política já estaria sendo elaborada no âmbito do MEC. O Observatório tem ainda um acordo de cooperação técnica com o Ministério dos Direitos Humanos.
“A gente tem insistido muito que os educadores trabalhem na perspectiva da educação e direitos humanos, porque são justamente aqueles que mais sofrem violência. Então, a gente tem uma demanda de que os educadores sejam reconhecidos como defensores de direitos humanos e incluídos como uma categoria específica nas políticas do ministério. É uma ferramenta de denúncia de violação de direitos humanos”, concluiu Penna.
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