O resultado de sucessivas reprovações, abandonos e tentativas de retorno à escola é a distorção idade-série, que chega a 21,1% dos estudantes nas escolas públicas municipais e estaduais - Edinah Mary/Unicef
O resultado de sucessivas reprovações, abandonos e tentativas de retorno à escola é a distorção idade-série, que chega a 21,1% dos estudantes nas escolas públicas municipais e estaduaisEdinah Mary/Unicef
Por MARTHA IMENES
A pandemia de coronavírus, além dos impactos socioeconômicos, como elevado número de mortes, aumento do desemprego, perda de renda, entre outros, trouxe à tona uma triste realidade: o agravamento do abismo social na educação brasileira. Levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do Instituto Claro mostra que 5,5 milhões de crianças e adolescentes tiveram seu direito à educação negado em 2020. Meninos, negros, indígenas, estudantes com deficiência e moradores de áreas rurais ou do Norte e Nordeste do país são as principais vítimas do problema, segundo o estudo divulgado na quinta-feira.
Para se ter uma ideia, somente na cidade do Rio de Janeiro esse número durante a pandemia chegou a 2.918, conforme informações da Secretaria Municipal de Educação. A capital tem hoje 643 mil alunos.
O estudo, que analisa dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, indica que 1,38 milhão de estudantes de 6 a 17 anos, ou 3,8% do total, não participaram de aulas presenciais ou remotas em outubro de 2020.
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Já entre os que disseram ter frequentado as aulas remotamente, 4,12 milhões relataram que não tiveram acesso às atividades escolares. O levantamento mostra o cenário de desigualdade anterior à pandemia: em 2019, segundo o Censo Escolar, 6 milhões de estudantes estavam pelo menos dois anos atrasados na escola, o que configura a situação de distorção idade-série, 2,1 milhões de estudantes foram reprovados no Brasil naquele ano, e mais de 620 mil abandonaram a escola.
Os números, segundo os pesquisadores, são sintomas da cultura do fracasso escolar, que torna aceitável que um perfil específico de estudantes passe pela escola sem aprender, sofrendo sucessivas reprovações até desistir.
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"É importante assumir que o abandono escolar ultrapassa as escolhas individuais, sobre as quais não se pode incidir. A reprovação e o abandono são desafios de toda a sociedade, o que inclui a escola, seus profissionais, gestores da educação, estudantes e suas famílias", alerta a pesquisa.
Se a reprovação escolar atingiu 7,6% dos alunos matriculados em 2019, esse percentual passa de 10% se consideradas as populações preta e indígena, enquanto na população branca não chega a 6%. Os estudantes com deficiência foram ainda mais afetados, com 11,5% de reprovação em 2019.
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Secretário Municipal de Educação do Rio, Renan Ferreirinha - Ricardo Cassiano/Prefeitura do Rio de Janeiro
Secretário Municipal de Educação do Rio, Renan FerreirinhaRicardo Cassiano/Prefeitura do Rio de Janeiro
No Rio, programa para evitar evasão
No Rio, desde o início da pandemia foram registrados 2.918 alunos evadidos – de um universo de 643 mil alunos. Esses números preocupam o secretário municipal de Educação, Renan Ferreirinha, que nesta semana divulgou o cronograma de retorno às aulas.
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Para evitar reprovação por faltas e abandono escolar, a SME criou um projeto que mantém em constante contato a escola, responsáveis e alunos visando um melhor desempenho e garantindo o direito à Educação. O Conselho Escola-Comunidade e o Grêmio Estudantil, atuam como parceiros essenciais desse projeto, criando estratégias territoriais de busca e visita aos alunos infrequentes.
"A evasão escolar é uma tragédia. Acontece mais forte no Ensino Médio, com os alunos adolescentes, jovens. Mas esse risco se intensificou no Ensino Fundamental devido à pandemia, pois ela afastou as crianças das escolas. Uma das nossas principais preocupações no momento é reatar os laços do estudante com o professor, com a escola", afirma Renan Ferreirinha, secretário municipal de Educação.
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"O retorno às aulas é muito mais do que colocar os alunos pra estudar, essa retomada também significa contribuir com o equilíbrio socioemocional e segurança alimentar das nossas crianças e jovens. Nada substitui a escola. Por isso, a volta às aulas será tanto remota quanto presencial com segurança nas escolas que estiverem aptas de acordo com nosso rigoroso protocolo. Quem não tem acesso à internet, receberá material didático impresso, por exemplo. Ninguém pode ficar de fora", afirma o secretário.
Nível de abandono em Roraima vai a 15%
Os dados da pesquisa Unicef/Instituto Claro mostram grandes disparidades entre estados brasileiros. Enquanto Acre (10%), Amapá (12%) e Roraima (15%) tiveram percentuais de dois dígitos para crianças e adolescentes de 6 a 17 anos que não frequentavam a escola, nem remotamente em outubro, a média no país era perto de 4%. O Estado do Rio de Janeiro seguiu a média nacional (4%). Minas Gerais e Sergipe tiveram o menor percentual: 2%.
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As desigualdades aparecem também quando considerada a etnia dos estudantes, com desvantagem para negros e indígenas em relação a brancos e amarelos.
Na apresentação do estudo, o chefe de educação do Unicef no Brasil, Ítalo Dutra, alertou que as crianças que deixaram de ter aulas presenciais e não participaram de atividades remotas perderam o vínculo com a escola e precisam ser trazidas de volta ao ambiente escolar.
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"Precisamos ir atrás desses 5,5 milhões de crianças e adolescentes e garantir que tenham acesso à escola já, imediatamente. E, nesse contexto, trabalhar para que a gente faça uma reabertura segura das escolas, onde as condições epidemiológicas permitirem, abrindo e fechando se houver piora ou melhora, mas a gente não pode deixar que milhões de crianças e adolescentes no país não tenham acesso à educação", disse ele, que defendeu o reconhecimento e enfrentamento das desigualdades.
Reprovação é indutora do abandono
A reprovação, segundo o estudo, é um poderoso indutor do abandono escolar, que também está relacionado a fatores externos, como a gravidez na adolescência e a incompatibilidade das atividades escolares com a necessidade de trabalhar ou realizar afazeres domésticos, por exemplo. "A persistência de altas taxas de reprovação é um desafio nacional. As reprovações em cada estado e cada município incidem mais sobre as populações preta e indígena e também sobre os meninos e sobre as pessoas com deficiência", analisa o levantamento.
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Entre os mais de 620 mil alunos que abandonaram a escola em 2019, 333 mil saíram no ensino médio. No Norte do país, chega a quase 10% a taxa de abandono escolar no ensino médio, contra 5,5% na média do Brasil e 4,1% no Sudeste.
O abandono escolar, considerando os ensinos Médio e Fundamental nas escolas estaduais e municipais, é mais grave entre a população indígena, em que chega a 5,3%, e atinge 5,7% se analisada apenas a população que vive em terras indígenas. Os valores representam mais que o dobro da média nacional de 2,3%.
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Pretos (2,9%) e pardos (2,6%) também apresentam números maiores que a média, enquanto brancos chegam ao percentual de 1,4%. Meninos (2,4%), estudantes com deficiência (2,7%), moradores de assentamentos (3%) e de quilombos (2,8%) são outros grupos acima da média nacional.
O resultado de sucessivas reprovações, abandonos e tentativas de retorno à escola é a distorção idade-série, que chega a 21,1% dos estudantes nas escolas públicas municipais e estaduais. A distorção afeta 46,8% dos estudantes com deficiência, 40,2% dos indígenas, 29,6% dos pretos, 26,4% dos estudantes de áreas rurais e 24,9% dos meninos.
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Para reverter a cultura do fracasso escolar
Para a reversão da cultura do fracasso escolar, o Unicef propõe, entre outras medidas, reconhecer as diversas formas de desigualdades que afetam os estudantes, abrir mais espaço para que se engajem e sejam ouvidos pelas escolas e buscar novas soluções para a avaliar o processo de aprendizagem.
O diretor de Pesquisa e Avaliação do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), Romualdo Portela lembra que questões culturais mudam lentamente.
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"As mudanças de cultura são as mais difíceis de serem processadas, porque não se muda isso pela lei ou administrativamente. Você tem que conseguir convencer as pessoas", afirma. "A sociedade pensa que a escola boa é a escola que reprova muito, e isso tem efeitos sistêmicos", finaliza.
*Com Agência Brasil