Em um comércio, uma funcionária me contou que havia entrado água na casa da sua mãe, em um dos bairros mais atingidos pela chuva em Caxias: "Mas o importante é que ela está bem. Tem gente que perdeu a vida"Arte: Kiko
Retrato do tempo
A marca da água, aliás, se torna evidente nas paredes dos imóveis onde entrou. Recém-pintadas ou não, acredito que doa da mesma maneira para seus moradores.
Procuro no meu dia a dia algo que faça sentido para ser escrito aqui. Sou guiada por sentimentos e, ao mesmo tempo, insisto em buscar certa leveza nas palavras, mesmo quando revelam angústias. Começo este texto com esse relato porque foi ele que permeou os meus pensamentos no início da semana passada, quando me perguntei: vale a pena buscar algo mais poético para esta crônica dominical se o que está na minha mente e no meu coração é a dor de tantas esperanças inundadas pelas chuvas? Para mim mesma, respondi que não.
Quando o temporal encharcou casas, levou vidas e tudo aquilo que é conquistado com muito suor e prestações às vezes não tão suaves, eu estava em um dos bairros mais atingidos pela enchente no Rio, em Jardim América, na Zona Norte. É impressionante perceber que a água sobe infinitamente pela rua, não escoa e parece que nunca mais vai descer, nem mesmo ao raiar do dia. Ela entra nas casas e, de repente, surge a pergunta: "E se ela chegar às tomadas? Há risco?" Os animais ficam acuados, e os donos não sabem como ser o porto seguro para os seus bichinhos. "Nunca vi nada igual": essa era a constatação.
Quando finalmente a rua começou a secar, em meados da manhã de domingo, confirmei que nada era mesmo igual. A lama evidente era o registro da tragédia. Pessoas já apareciam nas ruas trazendo suas histórias daquela madrugada. Carros que haviam ficado submersos eram, enfim, rebocados. A partir dali, mais e mais casos tomaram conta do noticiário: era a dor estampada de quem perdeu o investimento de seu trabalho em eletrodomésticos, móveis e tudo mais que dê conforto dentro de casa. Muitos itens ainda não haviam sido quitados. Comprar um bem de forma parcelada é acreditar que haverá um futuro para pagá-lo, e nunca tinha me dado conta disso de forma tão clara.
Voltei para Caxias, na Baixada, no domingo, onde a minha casa e rotina estavam mantidas. E, por mais que tenhamos vergonha do clichê, a gente precisa agradecer o que parece banal, mas que se escancara como privilégio em momentos assim: ter um lar, com tudo o que isso significa. Não saber mais para onde voltar é uma realidade dura demais. Felizmente, há quem tenha encontrado ajuda e abrigo da família na hora de recomeçar. Eu vi aquela tristeza, mas celebro a vida, o principal pertence.
A segunda-feira chegou, mas o fim de semana não virou passado. Ele era contado nas histórias de quem sofreu a perda de alguém muito querido ou buscava por seus desaparecidos. Eram relatos da dor que não seca quando a chuva passa. A marca da água, aliás, se torna evidente nas paredes dos imóveis onde entrou. Recém-pintadas ou não, acredito que doa da mesma maneira para seus moradores. Em um comércio, uma funcionária me contou que havia entrado água na casa da sua mãe, em um dos bairros mais atingidos pela chuva em Caxias: "Mas o importante é que ela está bem. Tem gente que perdeu a vida".
Na terça-feira, todos esses pensamentos reviravam a minha cabeça assim que acordei. Refleti que não nos veremos como coletividade se não percebermos que há vida fora dos nossos mundos. Precisamos sair das bolhas para entender de fato que somos um pontinho na imensidão. Assim, ao viver e ver um tanto disso tudo e ouvir outras histórias, concluí que hoje a poesia precisava se ausentar. Afinal, é a missão da escrita ser um retrato dos nossos tempos.
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