Essa também é a minha sensação: me recuso a crer que um robô poderá suprir a nossa capacidade de colocar afeto na escrita. Tanto é que precisei maturar este texto dentro de mimArte: Paulo Márcio

Veio da psicanalista Ana Suy o feixe de luz que faltava para eu concluir este texto. Já havia rascunhado esta escrita há algum tempo, mas as palavras pareciam se encontrar sem a bossa de que tanto gosto. Faltava um charme que só nós, humanos, conseguimos ter. Inclusive, já aceito que alguns textos precisam de um tempo nos meus pensamentos até nascerem de fato para o mundo. Assim, ao ver um vídeo da Ana Suy, tudo se clareou para mim.
"Tem um poema do Fernando Pessoa que diz assim: 'Arre! Estou farto de semideuses. Onde é que há gente no mundo?", começou Ana Suy. Ela, então, seguiu dizendo que sempre gostou muito do fragmento desse poema, que ultimamente tem feito mais sentido para ela. A psicanalista explicou que parece que tudo nas redes sociais foi escrito por um robô, uma inteligência artificial. "Assim, me dá até um quentinho no coração quando eu encontro uma contradição, um erro de vírgula, alguma coisa que me dá mesmo a sensação de que o texto foi escrito por um ser humano e não por um robô". Ana ainda completou afirmando que a gente precisa de pessoas e disse que as inteligências artificiais estão ótimas, mas ainda lhes falta a alma.
Essa também é a minha sensação: me recuso a crer que um robô poderá suprir a nossa capacidade de colocar afeto na escrita. Tanto é que precisei maturar este texto dentro de mim. Ele estava verde, feito fruta que se colhe do pé antes da hora. Com as minhas crônicas também acontece isso: hoje entendo e aceito o seu tempo de colheita. Assim, o vídeo da Ana Suy veio ao encontro de algo que havia me deixado cismada há algumas semanas. Em uma das minhas andanças pela Internet, havia descoberto que o travessão — este sinal de pontuação — tem sido apontado como um dos indícios de que um texto foi escrito por Inteligência Artificial. Passei a procurar mais sobre o assunto e vi que, de fato, há quem acredite que a escrita não é humanizada se há travessão em demasia. Logo pensei em um dos maiores jornalistas que conheço, consagrado pelos seus colegas de profissão e também por prêmios: Luarlindo Ernesto, ou simplesmente Luar. Aos 81 anos, ele segue na ativa, escrevendo a coluna 'Histórias do Luar', aqui mesmo no site do jornal O DIA, aos sábados.
O fato é que Luar usa e abusa dos travessões com maestria. Uma das funções desse sinal de pontuação é indicar falas no discurso direto. E, como bom contador de histórias, o nosso mestre do jornalismo nos presenteia semanalmente com diálogos repletos de bom humor e também do bom e velho travessão! Tudo isso contado diretamente do seu quintal — ou caverna, como ele gosta de chamar —, em Água Santa, na Zona Norte do Rio. Em uma de suas colunas recentes, intitulada 'Dular, a moeda do Principado', Luar escreveu:
"O Júlio acrescentou as ostras e os mexilhões. E o Fred, gourmet, foi logo alertando: — Não se esqueçam dos limões".
Luar, no entanto, está longe de ser um robô. Felizmente, o nosso mestre do jornalismo é bem humano e em nada se assemelha à IA. Justamente por isso, tem tiradas geniais. Os textos, inclusive, são todos tirados da cachola dele, para usar uma palavra com cara de antiga, assim como o travessão. Inclusive, encontrei matérias explicando que a origem desse sinal na língua portuguesa data do século 16, um tempo em que o mundo nem sonhava que a tecnologia iria escrever no lugar dos homens.
Como adoro revisitar o passado, não demorei a procurar alguns livros em um móvel da sala daqui de casa. A primeira obra que achei foi lida por um dos meus sobrinhos no colégio. Ainda dava para ver um pedaço da etiqueta com o seu sobrenome na capa, já um pouco gasta pela ação do tempo. Era 'O Menino de Asas', de Homero Homem, da Série Vagalume — aliás, quem se lembra dela? Abri logo na página 64 e quem estava lá, olhando para mim? Ele mesmo, o travessão:
Menino de Asas abriu a capa, mostrou as asas.
— Meu caso é este, doutor.
Pensei ainda em recorrer a alguns volumes de enciclopédias que ainda restam por aqui, mas dispensei a procura empoeirada nas relíquias e me dei por satisfeita. Já estava claro que o travessão é coisa dos bons e velhos tempos. De gente como Luar, que tem em casa máquinas de escrever e telefones de discar; que conheceu o Rio de Janeiro do bonde; e que conta causos como ninguém. Bem-humorado, ele até comentou comigo sobre a tal polêmica da pontuação: "Eu prefiro travessão mesmo. Mas não uso Inteligência Artificial. Prefiro a minha burrice natural". Só mesmo alguém como o Luar para fazer um comentário assim: humanamente irreverente.