Os assuntos se embaralham neste momento de perplexidade. Ninguém pode escrever sobre mais nada enquanto 300 mil mortos ainda permanecem insepultos nas nossas memórias. Em um momento em que nem mesmo a nossa tradição – o nosso rito de passagem nas mortes – pode ser preservada. Nessa quadra trágica na qual a falta do abraço é substituída pelo olhar, mas que, no momento da despedida final, não temos sequer o olhar familiar que nos acaricia. Nem o abraço, nem o olhar. Só a solidão como companheira ou o olhar cansado, mas solidário, de um profissional de Saúde. Esse herói anônimo.
A dor é a companheira da indignação. Sabemos todos que a irresponsabilidade genocida do governo, que virou as costas para a Ciência, que desprezou a vacina, que se vale da necropolítica, com a falta de empatia, que cultua a morte, faz do Brasil de hoje o país responsável por 1/4 de todas as mortes de covid-19 do mundo. Mas é necessário enfrentar, ainda que com a resistência literária.
Não vamos permitir que nos intimidem com a perversa ignorância física, com o boçal desconhecimento dos limites básicos da ética, do bom senso e até do humor. Os fascistas são bárbaros que não têm capacidade de compreender a ironia e que detestam poesia. Têm uma espécie de culpa enrustida de tudo, mesmo do que não sabem. Por isso, apelam para as armas, para a violência, para as ameaças. São covardes e canalhas.
É necessário saber enfrentar com resiliência as provocações diárias das tentativas de quebra da estabilidade institucional. Sem medo e com destemor. Sem escrúpulos, os idiotas fazem subleituras da aplicação do entulho autoritário que é a Lei de Segurança Nacional (LSN). Confundem, deliberadamente, a imprescindível liberdade de expressão, base de todo sistema democrático, com a orquestração financiada por grupos de extrema-direita que visam desestabilizar as instituições.
Vamos fazer nosso ato de resistência acreditando na Ciência, na vida, na solidariedade e na poesia. Vamos nos refugiar em Fernando Pessoa na pessoa de Caeiro:
“Sei ter o pasmo essencial que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras... sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo.”
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