"Por que existem uns felizes e outros que sofrem tanto? Nascemos do mesmo jeito
Moramos no mesmo canto. Quem foi temperar o choro. E acabou salgando o pranto?"
Ariano Suassuna, recitando Leandro Gomes de Barros
Por Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
Em qual encruzilhada o país se perdeu? Em que momento o destino resolveu renunciar a certo cuidado e deixou o Brasil à deriva? Quando foi dado o direito aos idiotas para falarem em nome das pessoas? Quando foi que a vergonha alheia deixou de corar as faces antes enrubescidas? Enfim, o que aconteceu que, de repente, a nossa capacidade de indignação parece prostrada, sem força, sem ânimo? O que a tristeza e o desânimo fizeram com nossas vidas?
Num dia em que foram registradas 3.025 mortes, números sabidamente subnotificados, a Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado, que visa apurar a tragédia da pandemia e os responsáveis por ela, começa a ouvir testemunhas que, pelo visto, ficarão sempre no fio da navalha entre serem simples testemunhas de fato, acusadores com objetivos políticos ou possíveis candidatos a futuro banco dos réus.
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A primeira testemunha a ser ouvida foi o ministro da Saúde entre janeiro de 2019 e abril de 2020. Embora ainda não houvesse vacina aprovada no período em que foi ministro, o comportamento do presidente já era claramente negacionista e incentivador de práticas que contribuíam para alastrar a pandemia.
Em uma tese nitidamente de defesa, o ex-ministro afirmou que não deixou o cargo porque o “cliente dele era o Brasil” e não poderia abandonar o “paciente” ainda doente. Quase bonito. Quase verdade. Quis se defender dizendo que agiu como médico, priorizando o “enfermo”. Um médico aceitaria que o dono do hospital adotasse medidas que impedissem o tratamento da doença? Permitiria o uso de remédios não indicados pela ciência? Conviveria com a manipulação de dados e com a interferência dos filhos do dono do hospital, os quais não possuem formação médica, na condução do tratamento de seu “paciente”?
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Se não houvesse sido instalada a CPI, quando o ex-ministro daria conhecimento público da carta que mostrou aos senadores, encaminhada, segundo ele, ao presidente da República em 20 de março de 2020, na qual apresentava várias recomendações para conter a pandemia? Será que só seria revelada nas próximas eleições quando o ex-ministro pretende ser candidato? Ora, se sua lealdade era com o “paciente”, a ponto de afirmar que não teria pedido demissão pois cuidava do “doente”, por que não tomou providências quando foi demitido? Não notou que o seu “paciente” iria entrar em sofrimento ainda maior? Não se desesperou ao deixar os doentes serem tratados por um sádico, um homem sem nenhuma empatia, um cultor da morte?
É evidente que ele viu a agonia lenta e desesperadora do “paciente” durante os meses subsequentes. Será que os 411 mil óbitos não foram o bastante para sensibilizá-lo a tentar frear o verdadeiro genocídio que nos sufoca a todo momento?
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Essas mortes, cada vez mais, deixam de ser apenas números, estatísticas. Uma pesquisa recente aponta que três em cada quatro brasileiros conhecem alguém que morreu de covid, seja um parente, um amigo ou um colega. Suspeito que seja até maior esse percentual. A morte hoje virou nossa companheira do dia a dia. E ela tem nome, ela tem rosto. Seja de uma maneira que nos emociona por tabela, como no estúpido falecimento do grande humorista, bem-humorado e brilhante Paulo Gustavo, seja no relato sobre o sofrimento de alguém desconhecido. E não há desculpa nenhuma que preencha a dor e o vazio dessas perdas.
Se fôssemos seguir um costume brasileiro, o de fazer um minuto de silêncio quando morre alguém, teríamos que ficar em silêncio obsequioso por quase dez meses seguidos. Seria um silêncio ensurdecedor. Um silêncio que cairia sobre nós e nos achataria, nos oprimiria. Deixaria a todos sem ação a ponto de nos tirar o fôlego, de nos impedir de respirar. Seria uma ausência de som cortante que reduziria nossos instintos e que nos levaria a uma incapacidade de enxergar. Talvez assim, sem ouvir, sem respirar e sem enxergar, o mundo voltaria a ter empatia e o homem se colocaria no lugar daquele que sofre pela força desse vírus cruel e traiçoeiro.
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Por isso, vamos acompanhar a CPI e cobrar para que não ocorra uma politização. Em homenagem à memória dos mortos, em respeito ao sofrimento nos leitos solitários das frias UTIs, em solidariedade aos que ficaram e guardam um luto indignado. Vamos apurar a responsabilidade criminal dos que efetivamente, por ação ou omissão, sujaram as mãos de sangue com essa tragédia brasileira. Que os senadores saibam honrar a expectativa que cada um de nós deposita neles. E que construam com independência e coragem o caminho que nos levará a todos que jogaram o país no precipício.
A história há de cobrar dos omissos, dos canalhas e dos que foram cúmplices. Como nos ensina Adélia Prado: “Estou com saudades de Deus, uma saudade tão funda que me seca.”