Às vésperas do feriado da Consciência Negra, o ator Samuel de Assis bate um papo exclusivo com a coluna Daniel NascimentoFoto: Pablo Groto

Com mais de 20 anos de carreira, Samuel de Assis tem marcado presença em produções que celebram a representatividade negra no Brasil, trazendo vida a personagens que refletem a riqueza e a complexidade das histórias da comunidade negra. Na véspera do Dia da Consciência Negra, feriado esse em que Samuel subira ao palco do teatro Rival em sessão única para apresentar do monologo “E vocês, quem são?”, o ator bate um papo exclusivo com a coluna Daniel Nascimento, o eterno Ben da novela "Vai na Fé" discutiu o impacto de seus papeis na TV e no streaming, os desafios que ainda persistem na indústria e seus próximos passos como artista.

Samuel, neste mês da Consciência Negra, como você avalia a importância de trazer personagens negros complexos e bem construídos para a TV aberta e o streaming? Acredita que estamos avançando em termos de representatividade?

"Sim, claro que estamos avançando! Não é à toa que temos, hoje, três protagonistas mulheres pretas no ar. Isso é resultado de muita luta, muito sangue, muita dor enfrentada. A coisa ainda está longe de ser o ideal, porque ainda se tem muita mentalidade atrasada, racista, perversa e/ou mal informada. O que é uma escolha para a grande maioria das pessoas com esses tipos de pensamentos. Meu monólogo “E Vocês, Quem São?”, fala também sobre a importância de se ter esse tipo de discussão e de se falar sobre a nossa história. A verdadeira história do Brasil".

Sua carreira abrange tanto papéis na televisão quanto em plataformas de streaming. Quais diferenças você percebe entre esses dois meios no que diz respeito à diversidade e representatividade negra?

"Sobre a representatividade negra, eu acho que tanto a luta e conquistas, como as derrotas, são as mesmas. Estamos evoluindo, mas com passos muito lentos. Quanto à diversidade, o fato do streaming ser uma plataforma paga - o que já seleciona o seu público -, ela se mostra mais aberta aos fatos. Temos mais liberdade de expressar os amores de todos os tipos, todos os gêneros e não-gêneros. Continuo sempre lembrando que não estamos em uma situação confortável e ideal, mas já é mais possível".

Em seu trabalho, você teve a oportunidade de interpretar personagens marcantes em diferentes produções. Como tem sido essa experiência e que impacto acredita que isso causa no público em termos de representatividade?

"Olha, sinceramente, eu acho que nunca vou conseguir responder, de fato, essa pergunta. Eu apenas costumo dizer que meu corpo vivo é política. Tudo em mim é política e representatividade, porque sou um homem de 42 anos, preto, nordestino e artista, em pleno Brasil de 2024, ou seja, eu sou uma exceção. Logo, qualquer personagem que eu faça é uma personagem política, é uma personagem que estará sempre dizendo para 56% da população: 'vem comigo, você consegue! Eu estou aqui por e para você. Se junte a mim!'"

Nos últimos anos, temos visto um crescimento na visibilidade de atores negros em papéis de destaque. Como você enxerga essa evolução, e o que ainda falta para alcançarmos um mercado audiovisual mais igualitário?

"Já falamos antes sobre isso. Estamos em um lugar muito mais feliz, mas longe do ideal, por conta de uma parcela significativa do país que insiste em conviver e disseminar o racismo, que tanto lhe ajuda a manter-se em uma “elite-falida”. O que falta, sinceramente, são as pessoas de “poder” - tanto midiático, quanto governamental -, abrirem suas cabeças para ensinar às grandes massas o que, de fato, elas precisam aprender".

Você acredita que o streaming tem contribuído para ampliar as oportunidades de atores e criadores negros? Que tipo de histórias ainda gostaria de ver sendo contadas?

"O streaming abriu portas e desmonopolizou o lugar de trabalho de todos os atores. Mas, repito, os atores negros ainda não são “vistos”, de verdade, como atores. Quando você assiste uma novela ou uma série com a maioria do elenco negro, esse projeto, com certeza, vai sofrer muito mais para passar por todas as etapas que precisa passar. Vai sofrer para captar recursos, conseguir um bom ou boa diretora, emplacar na audiência e por aí vai. Eu gostaria de ver histórias de pessoas pretas que foram e são muito importantes para o Brasil. Eu quero e vou conseguir ver antes de morrer, histórias que nos atravessam de verdade, sendo contadas como elas merecem, na TV e no streaming. Vai na Fé foi um ponto importante nessa conquista. Eram histórias pretas, contadas, realizadas e vividas, de verdade, por pessoas pretas".

Como foi sua trajetória até alcançar espaço na TV aberta e no streaming, e quais desafios enfrentou como ator negro nesse caminho?

"Ih meu filho [sic], tá com tempo? São inúmeros! Eu cheguei na TV aberta com 21 anos de carreira. Eu carreguei muito cenário nas costas, andei muito de perna de pau para pagar o aluguel, fiz muito teatro infantil, operei luz e som de vários projetos, entreguei panfleto na rua, ouvi que eu era muito preto para o papel X, ouvi que não era preto e, por isso, não pegaria o papel Y, ouvi que como eu era preto, precisava cuidar do corpo para ficar sarado, ou não pegaria papel nenhum".

Ao olhar para o futuro do audiovisual no Brasil, quais mudanças você espera ver para que o mercado seja mais inclusivo e valorizador das narrativas e talentos negros?

"Olha, a luta já está estabelecida. Eu acho que agora temos que mudar a cabeça de quem pode, de fato, educar e fomentar o grande público. Porque quando temos um projeto de novela, série e/ou filme, o que a gente mais ouve é: “o público não quer isso, ele não aceita isso ainda, ele não precisa assistir isso”. Quando, na verdade, a função de fomentar e educar esse público, é nossa! Nós precisamos mostrar que é importante para ele (público) discutir a violência que o racismo, o machismo, a xenofobia e a intolerância religiosa nos causam".

Quem são as suas principais referências no audiovisual e na luta pela representatividade negra? Como essas figuras influenciaram sua carreira e perspectiva sobre seu papel no setor?

"Olha, a Nina Simone me ensinou a brigar por liberdade, a brigar para não sentir medo. A Elza Soares me ensinou que a nossa maior vingança é dar certo. O Luiz Melodia me ensinou que pessoas pretas falam sobre e sentem amor. Djavan me ensinou a voar. A Zezé Mota me ensinou que eu posso ser bonito. Larissa Luz me ajuda, todos os dias, a me manter vivo. Tainara Cerqueira, minha coreógrafa e professora de dança afro, me ensina sobre a nossa existência preta e minha Mãe Manu, é quem me dá a força para continuar cuidando do meu Orí (cabeça). Isso porque falei só os básicos. Só pensando em tudo isso que eu consigo realizar meus projetos de vida".

A presença de protagonistas negros em plataformas de grande alcance tem um efeito profundo. O que você considera essencial para que essa visibilidade se transforme em mudanças reais para a comunidade negra na indústria?

"Tem um efeito profundo, porque somos 56% da população desse país e quando a maioria de um país consegue se enxergar em um lugar que sempre sonhou, é de uma importância sem tamanho. Eu acho que o fato da gente começar a se enxergar, já dá mais gás para continuar a luta e vencer mais batalhas. A indústria vai ter que enxergar a gente para o Brasil poder se enxergar".

Que mensagem deixaria para jovens negros que desejam seguir carreira no audiovisual e buscam inspiração na sua trajetória?

"Eu odeio quando me perguntam isso (risos), porque eu sempre respondo o que ninguém quer ouvir: 'Desistam! Vão fazer outra coisa'. Agora, se sua vida não fizer sentido nenhum sem isso, então você tem um passo grande já dado. Lute, estude e siga, apesar das porradas. Porque ser artista é tomar muito não da vida, das pessoas, da indústria, de você mesmo, mas realizar, apesar de. Ser negro é isso também, só que elevado à enésima potência".
Vale destacar que, no Dia da Consciência Negra (20/11), Samuel de Assis fará uma apresentação única de seu monólogo "E Vocês, Quem São?" no Rio de Janeiro, no Teatro Rival Petrobras, às 18h. A peça, que conta com atuação e direção do famoso, trata-se de um espetáculo escrito por Jonathan Raymundo. Conforme relatado pela assessoria do artista, é um grito de liberdade de pessoas pretas ao questionar o lugar ocupado pela branquitude na sociedade extremamente desigual.