Jéssica Ellen reflete sobre os desafios estruturais do mercado audiovisual Foto: Chico Cerchiaro/ Divulgação - Stylist: Caroline Costa - Produção de Moda: Joanna Santana - Tulany Freitas - Cabelo: Lucas Tetteo - Make: Diego Nardes
Eu acho que a gente está vivendo um momento muito bonito, não é? Um momento que é um marco histórico! Tudo que a gente vê pela primeira vez marca um acontecimento no percurso da história. Então, é de fato um momento muito bonito e pensado, e desejado e sonhado por gerações anteriores à nossa e que começaram muito antes da gente. São pessoas que estão na luta há muito tempo e que reivindicam os direitos há muito tempo. Então, o momento de agora é a concretização de uma luta que já é antiga. Embora seja um momento feliz, é um momento que demorou para ser realizado e concretizado. É uma responsabilidade muito grande de dar seguimento a esse legado que já vem sendo plantado e cultivado há muito tempo.
Ao longo de sua trajetória, você sempre trouxe personagens com profundidade e intensidade. Como é, para você, contribuir para que histórias de mulheres negras sejam contadas de maneira autêntica e significativa na TV aberta?
Primeiro, obrigada pelo elogio. Eu realmente sou uma artista que me vejo de uma maneira muito profunda em relação à arte. A arte realmente é meu oxigênio e eu levo muito a sério em todo o trabalho que eu me proponho a fazer, que eu aceito fazer e tento sempre entregar o melhor com os personagens. Então, para mim, é uma responsabilidade estar na tela, estar na televisão toda vez que eu vou estrear um produto, uma série, eu penso que a gente está se comunicando com milhares de pessoas, milhões de pessoas todos os dias. Mas isso é muito poderoso. E por ser muito poderoso, eu. Sempre tento, na construção do personagem, trazer a autenticidade porque eu acho que esse é o caminho. Durante muito tempo, a gente, pessoas pretas, fomos vistas como um bloco. Todos nós somos isso. Só que nós somos muitos dentro da nossa comunidade, da comunidade negra.
A presença de três protagonistas negras em novelas da Globo simultaneamente é histórica. Como você acredita que essa conquista impacta jovens negras que se veem nessas personagens, e como isso ressoa com sua própria história de vida?
Eu acho super bonito quando a gente vê, por exemplo, um triz da minha novela, não é? Existem vários atores e atrizes negras onde os personagens são completamente distintos.
Eu acho que complementa a minha fala na resposta da pergunta dois. Que, quanto mais a gente mostra a diversidade desses corpos, desses pensamentos, dos propósitos de cada personagem, a gente está dando a chance das pessoas se enxergarem nas suas diversidades. Então, a Bia Santana, que faz minha irmã, ela defende a Tati de uma maneira que é completamente diferente da Madalena, que também é um pouco mais velha, a Tati é mais nova. Aí tem a Miranda, que é a Gabi, a Dias, que é uma personal, que é uma professora de academia. Aí tem o Nando, que é um menino mais novo, filho de um casal rico. Vamos mostrando a possibilidade das pessoas se enxergarem na diversidade e não ter só um modelo para se inspirar, ou só um modelo como algo único, possível e exclusivo.
O mercado audiovisual brasileiro, assim como o internacional, tem avançado na questão da diversidade, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. Que mudanças estruturais acredita que são necessárias para que essa representatividade não seja uma exceção, mas a norma?
Acho que uma das mudanças que a gente vê é realmente a sua busca por retratar a diversidade na sua magnitude, né? Então, pessoas pretas protagonizando projetos, mas também precisamos ter pessoas indígenas na frente e atrás dos projetos, né? Não só pensando, não só na tela, mas pensando também nos bastidores, né? Porque isso faz muita diferença quando você tem uma direção que pensa a diversidade, quando você vê uma autoria pensando diversidade, né? Pessoas amarelas tendo mais espaço, pessoas com deficiência tendo mais espaço. A gente precisa, para mim, o futuro do audiovisual é realmente mostrar a diversidade na tela que a gente tem no nosso país, que a gente tem na nossa sociedade no dia a dia. Isso seria, de fato, o grande avanço e a concretização dessa mudança. Para, além disso, existe um marco também. Que precisa ser revisto e retratado, que são os cachês, as questões financeiras.
Em "Volta por Cima", seu personagem enfrenta desafios e superações. Como você enxerga a importância de mostrar personagens negros com complexidade, que vão além de estereótipos, e como isso contribui para o debate sobre raça e identidade na sociedade?
Acho fundamental a gente estar tendo a chance de mostrar os personagens vivendo as suas contradições, os seus desafios pessoais, justamente para sair dos estereótipos. Claro que a gente entende que existem as funções, a mocinha, o herói, o vilão, todos os personagens contribuem para a construção daquela história, daquela narrativa, para que o público se identifique com o herói ou com a mocinha e tenha raiva do vilão ou se identifique com o vilão, que seja um vilão cômico.
Considerando que estamos no Mês da Consciência Negra, o que significa para você, como atriz e mulher negra, estar no ar em uma novela de grande alcance em um papel de protagonista?
Eu acho forte, acho bonito, acho significativo, mas eu sempre faço uma provocação, que eu fiz muito também na época de Amor de Mãe, quando as pessoas me questionavam muitas coisas sobre as trajetórias dos artistas negros, que é o seguinte: 'Eu acho importante o mês de novembro. Ele precisa ser visto, celebrado, e a gente acaba tendo a agenda muito cheia, porque acaba que os olhares voltam para esse momento, só que eu sou negra o ano inteiro, não é?' Eu sou uma mulher negra o ano inteiro, durante toda a minha vida, durante a minha infância, minha adolescência, então, se a gente realmente quer mudar os olhares e ampliar as discussões, isso precisa ser uma agenda diária nossa, e não ser só algo pautado em novembro. É claro que em novembro a gente acaba tendo esse holofote, digamos assim, como em junho a gente fala. Mais sobre as questões da comunidade LGBTQIA, PN+, mas a gente precisa ter essa consciência de que as mudanças só acontecem quando a gente trabalha nelas diariamente, não só num recorte de 30 dias, num mês.
Que tipo de histórias e personagens você acredita que ainda faltam ser contados no Brasil, e como esses relatos podem contribuir para transformar o imaginário social e dar mais espaço para narrativas negras?
Eu acho que a gente está já caminhando para isso. Acho que o que faltava nos personagens que acabavam sendo designados para atores e atrizes negras eram personagens complexos, personagens que apresentassem uma subjetividade construída para além de ser uma função para um outro personagem branco. Então, acho que a gente já está avançando, esses personagens já estão sendo criados. E eu acho que no momento em que a gente estiver, no momento da sociedade, no momento da dramaturgia, onde só o talento vai ser visto como o parâmetro para uma escalação, talvez aí a gente tenha chegado no lugar e tenha avançado de fato. Eu lembro que durante 90% da minha vida, da minha trajetória no audiovisual, quando tinha o personagem, chegava fulana, entre aspas, negro, né? Tipo, ou seja, aquele personagem que já era pequeno, ele já era designado para uma pessoa negra, no meu caso. Então, quando eu pego um roteiro hoje que não está lá escrito, fulana, negra, entre aspas, numa... Então, a gente já percebe que tem um caminho percorrido, que o avanço está sendo feito. Mas a mudança está sendo construída no atual momento, né? Atualmente. Então, de fato, a gente já avançou, mas as coisas continuam sendo questionadas. E elas precisam ser questionadas para que um futuro próximo, coisas que até pouco tempo a gente naturalizava, não naturalizem mais, né? Então, acho que os personagens... Que personagens estão faltando no audiovisual?
Em sua carreira, quais foram os principais desafios que você enfrentou devido à questão racial, e como esses obstáculos moldaram a artista e mulher que você é hoje?
Eu já vivi alguns desafios, assim, primeiro que é isso, assim, até pouco tempo as pessoas não sabiam lidar com o cabelo crespo, com o cabelo cachado, então isso é uma unanimidade, quando eu converso com colegas pretos, atrizes e atores, tem uma questão que é a caracterização, ainda as pessoas têm dificuldade de entender o crespo, de entender quais são as necessidades de um cabelo cachado, um cabelo crespo, um cabelo 4C, um cabelo 4B, um cabelo 3B, são questões que eu vejo que o mercado ainda não está preparado, eles precisam de forma geral dar uma corrida no tempo, assim, salva raríssimas exceções, um ou dois, três profissionais que se destacam por saber trançar um cabelo, por saber finalizar um cabelo, então isso é algo que eu percebo que ainda precisa ser melhorado e no início da carreira, então era completamente desafiador. Porque eu chegava aos espaços, as pessoas não sabiam lidar com o meu cabelo, e aí, na maioria das vezes, ficava como se o meu cabelo fosse um problema, quando, na verdade, o problema era aqueles profissionais não terem nenhum domínio, nenhum conhecimento sobre um cabelo crespo e cacheado. Fora as questões de narrativas e dramatúrgicas, que eu acho que eu estou falando desde as primeiras perguntas, que é essa questão da subjetividade, né?
É, a gente está caminhando para uma mudança, né? Isso está sendo visto, posto e dado, colocado. E o meu conselho para os produtores, diretores, roteiristas é que, quando a gente lida com poderes, a gente precisa ter responsabilidade, né? Comunicar com o país inteiro é uma responsabilidade. Então, não só o meu conselho, mas o meu desejo é que essas pessoas que têm o poder da caneta na mão chamem para as suas equipes também um olhar mais diverso, né? Porque a gente pode questionar, duvidar e querer que as coisas mudem, só que as coisas só vão mudar quando realmente as pessoas que estão nos grandes acessos com a caneta na mão ampliem o seu olhar e que isso também seja um desejo para a mudança total do mundo e da sociedade, né? Então, muitas vezes a gente fala, fala, fala, mas. Se a pessoa que está com o poder da caneta na mão não ouvir ou não quiser dar voz, ela não vai dar. Então, para além de um conselho, meu desejo mesmo é que, para além da gente, acessar esses lugares de poder, porque a gente, para acessar esses lugares de poder, precisa que alguém abra a porta ou a gente mesmo abra. Muitas vezes é isso que acontece.
Eu acho que é um pouco do que falei na pergunta anterior. Acho que quando a gente entender que quanto mais diversidade a gente tem nas nossas equipes, nos nossos projetos, mais rico é esse projeto, acho que a gente faz um golaço. Então, para além de ter atrizes e atores negros na tela e nessa representatividade que é fundamental, a gente precisa ter diretores e diretoras negras, produtores e produtoras negras, maquiadoras, cabeleireiras, pessoas que entendem do nosso. Cabelo, das nossas subjetividades, das nossas questões, acho que aí a gente consegue retratar toda essa representatividade em 360, não só na tela, mas no behind the câmeras, atrás das câmeras também. Eu sou super curiosa, eu tenho uma maneira de trabalhar onde eu realmente vejo tudo como uma parte fundamental da engrenagem, fazer televisão. É um desafio enorme porque são muitas pessoas, para que uma cena dê certo, então a equipe de caracterização, equipe de figurino, o próprio texto, então tem a equipe de dramaturgia, a equipe de caracterização, o som, o microfone, a equipe de arte, o enquadramento, são tantas nuances, são tantos detalhes, assim, que são coisas que me encantam. Muita gente, alguns colegas falam, aí daqui a pouco você está dirigindo, porque do dia que você vê tudo 360, daqui a pouco você vai para a direção também. Eu amo estar na frente da tela. Mas também amo estar atrás das câmeras, né, então isso também é um desejo meu, talvez futuramente dirigir, mas algo que eu acho que traz esse olhar e essa riqueza para as obras de forma geral é a gente entender que não é só na frente da câmera que a gente vai resolver as nossas questões, é a gente tá ocupando todos os espaços e contribuir mesmo, né, fazer a nossa contribuição afetiva, intelectual, a nossa visão de mundo.
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