Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco - Acervo Pessoal
Pedro H. Villas Bôas Castelo BrancoAcervo Pessoal
Por Sidney Rezende
O cientista político Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco, professor do IESP/UERJ, é uma estrela em franca ascensão. Seus estudos são respeitados por civis e militares. Ele integra o Laboratório de Estudos Políticos em Defesa e Segurança Pública, ligado à UERJ e à Escola Superior de Guerra (ESG). Ele também faz parte do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida (UVA). Durante o doutorado, estudou com bolsa de extensão no convênio DAAD/CAPES no Otto-Suhr-Institut für Politikwissenschaft (Instituto de Ciência Política Otto Suhr) na Freie Universität Berlin (Universidade Livre de Berlim), na Alemanha. Nos últimos tempos, tem se debruçado sobre os graves problemas brasileiros. Castelo Branco também tem um olhar atento ao que acontece no Rio de Janeiro e, por isso, a coluna foi conversar com ele sobre as razões das constantes crises vividas pela elite política fluminense.

A política praticada no Rio tem peculiaridades que surpreendem o Brasil. Quais as razões que levaram a esta mistura de política e polícia?

A confusão entre política e polícia no Rio de Janeiro tem raízes históricas que poderiam remontar à vinda da família real, em 1808, que marca as origens da polícia militar. Em 1809, com a denominação de Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, foi criada para proteger a família real. Por isso, há quem entenda que, desde sua origem, a Polícia Militar conserva um resíduo de uma polícia política voltada à proteção de elites dirigentes tanto políticas como econômicas. Embora a polícia tenha se democratizado, sobretudo a partir da ideia de uma segurança pública instituída pela Constituição de 1988, e que se voltaria para proteção da sociedade como um todo, ela continuou sendo um instrumento de manutenção da ordem social, marcada por uma profunda desigualdade estrutural. A polícia não é agente transformador da estrutura social, mas cuida da manutenção da ordem vigente. Não creio, entretanto, que a razão principal da confusão entre política e polícia seja fator de origem histórica, porque houve mais de 200 anos para alterar o papel histórico da polícia e, tanto ela como a política, passaram por mudanças ao longo deste período. A incapacidade de o Estado estender suas políticas às áreas mais pobres e populosas fizeram com que perdesse o controle sobre territórios, sobretudo com entrada das drogas na década de 70. Além disso, a dificuldade em ter o monopólio da força pelo estado em razão da corrupção de seus agentes públicos sempre deixou aberto o flanco para o uso político da polícia. A perda de controle sobre as próprias polícias e sobre a criminalidade tem como um dos fatores a despolitização da sociedade e das elites que priorizam vantagens de âmbito privado em detrimento do bem comum, confundem o público com o privado. Quando a polícia se torna um instrumento na mão de um político, ela deixa de ser política, pois não atende mais o interesse coletivo e passa a ser controlada por interesse privativo de famílias e grupos.

O Rio tem milícia, tráfico de drogas e violência policial no mesmo caldeirão. A sociedade e a elite dirigente não conseguem encontrar o caminho da segurança pública. Como desatar este nó?

Este nó não é desatado, porque a desigualdade social está enraizada e cristalizada na própria estrutura social que, a depender dos governantes do Estado do Rio de Janeiro, é conservada por interesse e conveniência. A polícia, concebida para a sustentação e manutenção da ordem pública, voltada para a garantia do cumprimento da lei e da paz nas cidades, atua com frequência para defender segmentos da sociedade que controlam o Estado e nele ocupam funções, como é o caso de seus governantes, empresários etc. O nó só pode ser desatado por uma política de segurança pública que altere a própria noção de segurança pública do artigo 142 da Constituição Federal que opera um notável reducionismo ao praticamente tratar a questão de segurança pública como um assunto de polícias. A segurança pública vai muito além da descrição das atribuições policiais, não existe segurança da coletividade sem políticas sociais, sem um envolvimento de diversos segmentos da sociedade. A primeira medida para desatar o nó é pôr um ponto final à concepção bélica de segurança pública, que converte operações policiais em operações de guerra, que compensa a deficiência de prevenção e investigação com repressão. O modelo militarizado de confronto é uma máquina de extermínio que vitimiza policiais, moradores inocentes e criminosos. A segurança pública inexiste sem outras ações sociais que vão da educação, saúde, iluminação a atividades culturais. O controle de armas é o controle mais essencial, no entanto o Estado não só perdeu o monopólio das armas como, no âmbito federal, estimula uma política armamentista. A ideia de armar grupos, de não rastrear armas e munições, como foi sinalizado pelo presidente da República com a revogação de portarias do Exército que visavam o controle de armas e munições por meio de seu rastreamento, tornam o Estado mais permeável à milícia, ao tráfico e à corrupção de membros da polícia.

Qual a sua avaliação sobre o processo de impeachment do Governador Wilson Witzel?

O processo de impeachment, neste momento em que a pandemia provocada pelo coronavírus já vitimou mais de sete mil pessoas no Rio, agrava a crise do Estado e cria mais incerteza quanto às medidas sanitárias de combate à doença e ações para viabilizar a retomada da economia. Ficar sem governador e, talvez, também vice-governador, num dos momentos mais delicados da história do Rio e do país, é extremamente temerário. O caráter intempestivo, a falta de timing do processo de impeachment do governador não quer dizer que não deva ocorrer no futuro, quando tivermos conseguido mitigar do contágio. O processo de impeachment tem alguns significados. Seu caráter apressado tem a ver com a "guerra política" entre governo federal e os governadores da maioria dos Estados do país, sobretudo os governadores do Rio e São Paulo, que se apresentam como eventuais candidatos à corrida presidencial de 2022. As investigações que alcançaram o suposto desvio de verba pública do governo do Estado do Rio já estavam em curso há algum tempo e há provas contundentes, mas a aceleração no ritmo das investigações, assim como a busca e apreensão na casa do governador, está relacionada à guerra particular entre Witzel e Bolsonaro. É mais um caso explícito da primazia do interesse particular frente ao interesse público. O governador do Rio, desde que se viu encurralado pelas investigações de desvio de recursos, buscou, na contramão da advertência de epidemiologistas, relaxar as medidas de isolamento social e acelerar a reabertura da economia para tentar um alinhamento com o presidente e, consequentemente, uma trégua. Witzel, fiel ao estilo bolsonarista, sem o qual não teria vencido as eleições, não tem base partidária sólida e se recusou a governar mediante diálogo, acordos e coalizões com a Assembleia. Agora, enfraquecido por todos os lados, busca fazer acordos com o centrão em troca de cargos.

O senhor encontra elementos para dizer que o Governo Federal está manejando os instrumentos oficiais e do Estado para influir na política fluminense?

O presidente interveio no comando da Polícia Federal do Rio, que é seu berço político e de seus filhos, sendo que dois deles são investigados. Polícia não é órgão de inteligência do presidente da República. O presidente confunde o cargo político com a propriedade privada de um feudo. Ao dizer "a Constituição sou eu", Bolsonaro nos faz lembrar de Luís XIV, rei da França por 72 anos, notabilizado com a frase "o Estado sou eu". A diferença é que ele governava em uma época em que o poder passava de pai para filho, a casa do rei era a sede do poder e os assuntos privados não estavam nitidamente separados dos assuntos públicos.

O presidente e sua família atuam no Rio de Janeiro, o que isto significa? Há alguma vantagem objetiva termos um presidente em Brasília que conheça bem os problemas específicos de sua base eleitoral?

Em tese, a experiência do presidente e sua família por décadas de atuação política representando o Rio de Janeiro, nas diversas esferas legislativas, poderia ser bastante positiva. No entanto, o que se vê é muita preocupação com questões particulares e, pelo contrário, um deliberado boicote ao estado, por conta da rixa com o governador Witzel. O presidente e sua família têm interesses no Rio, berço político do clã Bolsonaro onde se encontra sua base eleitoral. Isso poderia significar uma dedicação especial e ter resultados positivos, mas o que vemos é um conflito político com o governo local em meio a um dos momentos mais delicados da história do país provocados por uma pandemia que já ceifou a vida de mais de sete mil pessoas apenas no Estado do Rio. A falta de articulação política entre o Governo Federal e o governo carioca no meio de um grave momento de crise e a tentativa de interferir na superintendência da Polícia Federal para proteção seu filho Flávio Bolsonaro deixam claro que o foco do presidente está voltado para assuntos pessoais.

Este ano teremos eleições municipais, o senhor acredita em mudanças fundamentais?

É difícil prever, pois a política ficou intimamente associada aos resultados do enfrentamento da pandemia. O prefeito, que se apresenta como candidato, busca se alinhar ao presidente. No entanto, durante a pandemia, apresentou comportamento errático, ora se alinhando ao presidente, ora em desacordo com suas orientações. A grosso modo, as eleições municipais tendem a reproduzir na esfera municipal a disputa política que vem sendo travada entre os governadores e o presidente da República. O resultado da disputa depende do número de mortes provocadas pela pandemia, o que significa que candidatos municipais de oposição ao presidente tendem a ter boas chances, mas, como as candidaturas ainda não estão certas e tampouco a própria realização da eleição nos próximos meses, é difícil neste momento arriscar um prognóstico.

Afinal, o povo da cidade do Rio é conservador ou progressista? Esta discussão ainda cabe atualmente?

A discussão ainda é cabível na medida em que se compreenda os termos mencionados. De modo geral, os conservadores podem ser representados por uma pauta que ajudou a eleger o presidente da República, que se apresenta como favorável à família tradicional, contrária ao aborto, contra política de gênero, cotas etc. Entendo, porém, que eles não sejam conservadores, mas, mais precisamente, reacionários, pois suas ações representam uma reação a políticas inclusivas que vinham ampliando direitos por meio de políticas de reconhecimento. Creio que o Rio de Janeiro, como todo o Brasil, seja mais conservador do que progressista, mas não reacionário, quer manter o que está posto, conservar a ordem social e econômica, mas não querem uma ditadura militar e uma sociedade armada.

A religião influencia na política no Rio? O que tem de bom e o que tem de negativo nesta relação? Não esqueça que Edir Macedo e Silas Malafaia têm suas bases fincadas aqui.

A religião tem exercido forte influência na política do Rio. Além de não ser possível ganhar as eleições sem o eleitorado evangélico, muitos evangélicos ingressaram na política assumindo cargos no executivo e legislativo. A relação entre religião e política nunca deixou de existir, mas a religião voltou a interferir fortemente em questões políticas e jurídicas que eram vistas como assuntos laicos. Há quem diga que, além de uma militarização da política, estamos diante de uma evangelização da política, pondo em xeque a própria ideia de República, que formalmente torna a religião um assunto particular. Sua existência não existe senão de forma secularizada, ou seja, a religião é assunto de foro íntimo e não de Estado. Quando a religião se mistura em larga escala à política, e hoje pastores detêm meios de comunicação que exercem influência em todas as esferas, a polarização política tende a escalar e descambar para a violência, pois quando ela se alimenta da crença religiosa, dificilmente permite aceitar a diferença. Outra questão é pensar o porquê do crescimento evangélico e ingresso de seus membros na política: tem a ver com a deficiência de políticas públicas e carência da população encontrando apoio em grupos evangélicos que ocuparam espaços abandonados pelo Estado.