A política praticada no Rio tem peculiaridades que surpreendem o Brasil. Quais as razões que levaram a esta mistura de política e polícia?
A confusão entre política e polícia no Rio de Janeiro tem raízes históricas que poderiam remontar à vinda da família real, em 1808, que marca as origens da polícia militar. Em 1809, com a denominação de Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, foi criada para proteger a família real. Por isso, há quem entenda que, desde sua origem, a Polícia Militar conserva um resíduo de uma polícia política voltada à proteção de elites dirigentes tanto políticas como econômicas. Embora a polícia tenha se democratizado, sobretudo a partir da ideia de uma segurança pública instituída pela Constituição de 1988, e que se voltaria para proteção da sociedade como um todo, ela continuou sendo um instrumento de manutenção da ordem social, marcada por uma profunda desigualdade estrutural. A polícia não é agente transformador da estrutura social, mas cuida da manutenção da ordem vigente. Não creio, entretanto, que a razão principal da confusão entre política e polícia seja fator de origem histórica, porque houve mais de 200 anos para alterar o papel histórico da polícia e, tanto ela como a política, passaram por mudanças ao longo deste período. A incapacidade de o Estado estender suas políticas às áreas mais pobres e populosas fizeram com que perdesse o controle sobre territórios, sobretudo com entrada das drogas na década de 70. Além disso, a dificuldade em ter o monopólio da força pelo estado em razão da corrupção de seus agentes públicos sempre deixou aberto o flanco para o uso político da polícia. A perda de controle sobre as próprias polícias e sobre a criminalidade tem como um dos fatores a despolitização da sociedade e das elites que priorizam vantagens de âmbito privado em detrimento do bem comum, confundem o público com o privado. Quando a polícia se torna um instrumento na mão de um político, ela deixa de ser política, pois não atende mais o interesse coletivo e passa a ser controlada por interesse privativo de famílias e grupos.
O Rio tem milícia, tráfico de drogas e violência policial no mesmo caldeirão. A sociedade e a elite dirigente não conseguem encontrar o caminho da segurança pública. Como desatar este nó?
Este nó não é desatado, porque a desigualdade social está enraizada e cristalizada na própria estrutura social que, a depender dos governantes do Estado do Rio de Janeiro, é conservada por interesse e conveniência. A polícia, concebida para a sustentação e manutenção da ordem pública, voltada para a garantia do cumprimento da lei e da paz nas cidades, atua com frequência para defender segmentos da sociedade que controlam o Estado e nele ocupam funções, como é o caso de seus governantes, empresários etc. O nó só pode ser desatado por uma política de segurança pública que altere a própria noção de segurança pública do artigo 142 da Constituição Federal que opera um notável reducionismo ao praticamente tratar a questão de segurança pública como um assunto de polícias. A segurança pública vai muito além da descrição das atribuições policiais, não existe segurança da coletividade sem políticas sociais, sem um envolvimento de diversos segmentos da sociedade. A primeira medida para desatar o nó é pôr um ponto final à concepção bélica de segurança pública, que converte operações policiais em operações de guerra, que compensa a deficiência de prevenção e investigação com repressão. O modelo militarizado de confronto é uma máquina de extermínio que vitimiza policiais, moradores inocentes e criminosos. A segurança pública inexiste sem outras ações sociais que vão da educação, saúde, iluminação a atividades culturais. O controle de armas é o controle mais essencial, no entanto o Estado não só perdeu o monopólio das armas como, no âmbito federal, estimula uma política armamentista. A ideia de armar grupos, de não rastrear armas e munições, como foi sinalizado pelo presidente da República com a revogação de portarias do Exército que visavam o controle de armas e munições por meio de seu rastreamento, tornam o Estado mais permeável à milícia, ao tráfico e à corrupção de membros da polícia.
Qual a sua avaliação sobre o processo de impeachment do Governador Wilson Witzel?
O processo de impeachment, neste momento em que a pandemia provocada pelo coronavírus já vitimou mais de sete mil pessoas no Rio, agrava a crise do Estado e cria mais incerteza quanto às medidas sanitárias de combate à doença e ações para viabilizar a retomada da economia. Ficar sem governador e, talvez, também vice-governador, num dos momentos mais delicados da história do Rio e do país, é extremamente temerário. O caráter intempestivo, a falta de timing do processo de impeachment do governador não quer dizer que não deva ocorrer no futuro, quando tivermos conseguido mitigar do contágio. O processo de impeachment tem alguns significados. Seu caráter apressado tem a ver com a "guerra política" entre governo federal e os governadores da maioria dos Estados do país, sobretudo os governadores do Rio e São Paulo, que se apresentam como eventuais candidatos à corrida presidencial de 2022. As investigações que alcançaram o suposto desvio de verba pública do governo do Estado do Rio já estavam em curso há algum tempo e há provas contundentes, mas a aceleração no ritmo das investigações, assim como a busca e apreensão na casa do governador, está relacionada à guerra particular entre Witzel e Bolsonaro. É mais um caso explícito da primazia do interesse particular frente ao interesse público. O governador do Rio, desde que se viu encurralado pelas investigações de desvio de recursos, buscou, na contramão da advertência de epidemiologistas, relaxar as medidas de isolamento social e acelerar a reabertura da economia para tentar um alinhamento com o presidente e, consequentemente, uma trégua. Witzel, fiel ao estilo bolsonarista, sem o qual não teria vencido as eleições, não tem base partidária sólida e se recusou a governar mediante diálogo, acordos e coalizões com a Assembleia. Agora, enfraquecido por todos os lados, busca fazer acordos com o centrão em troca de cargos.
O senhor encontra elementos para dizer que o Governo Federal está manejando os instrumentos oficiais e do Estado para influir na política fluminense?
O presidente interveio no comando da Polícia Federal do Rio, que é seu berço político e de seus filhos, sendo que dois deles são investigados. Polícia não é órgão de inteligência do presidente da República. O presidente confunde o cargo político com a propriedade privada de um feudo. Ao dizer "a Constituição sou eu", Bolsonaro nos faz lembrar de Luís XIV, rei da França por 72 anos, notabilizado com a frase "o Estado sou eu". A diferença é que ele governava em uma época em que o poder passava de pai para filho, a casa do rei era a sede do poder e os assuntos privados não estavam nitidamente separados dos assuntos públicos.
O presidente e sua família atuam no Rio de Janeiro, o que isto significa? Há alguma vantagem objetiva termos um presidente em Brasília que conheça bem os problemas específicos de sua base eleitoral?
Em tese, a experiência do presidente e sua família por décadas de atuação política representando o Rio de Janeiro, nas diversas esferas legislativas, poderia ser bastante positiva. No entanto, o que se vê é muita preocupação com questões particulares e, pelo contrário, um deliberado boicote ao estado, por conta da rixa com o governador Witzel. O presidente e sua família têm interesses no Rio, berço político do clã Bolsonaro onde se encontra sua base eleitoral. Isso poderia significar uma dedicação especial e ter resultados positivos, mas o que vemos é um conflito político com o governo local em meio a um dos momentos mais delicados da história do país provocados por uma pandemia que já ceifou a vida de mais de sete mil pessoas apenas no Estado do Rio. A falta de articulação política entre o Governo Federal e o governo carioca no meio de um grave momento de crise e a tentativa de interferir na superintendência da Polícia Federal para proteção seu filho Flávio Bolsonaro deixam claro que o foco do presidente está voltado para assuntos pessoais.
Este ano teremos eleições municipais, o senhor acredita em mudanças fundamentais?
É difícil prever, pois a política ficou intimamente associada aos resultados do enfrentamento da pandemia. O prefeito, que se apresenta como candidato, busca se alinhar ao presidente. No entanto, durante a pandemia, apresentou comportamento errático, ora se alinhando ao presidente, ora em desacordo com suas orientações. A grosso modo, as eleições municipais tendem a reproduzir na esfera municipal a disputa política que vem sendo travada entre os governadores e o presidente da República. O resultado da disputa depende do número de mortes provocadas pela pandemia, o que significa que candidatos municipais de oposição ao presidente tendem a ter boas chances, mas, como as candidaturas ainda não estão certas e tampouco a própria realização da eleição nos próximos meses, é difícil neste momento arriscar um prognóstico.
Afinal, o povo da cidade do Rio é conservador ou progressista? Esta discussão ainda cabe atualmente?
A discussão ainda é cabível na medida em que se compreenda os termos mencionados. De modo geral, os conservadores podem ser representados por uma pauta que ajudou a eleger o presidente da República, que se apresenta como favorável à família tradicional, contrária ao aborto, contra política de gênero, cotas etc. Entendo, porém, que eles não sejam conservadores, mas, mais precisamente, reacionários, pois suas ações representam uma reação a políticas inclusivas que vinham ampliando direitos por meio de políticas de reconhecimento. Creio que o Rio de Janeiro, como todo o Brasil, seja mais conservador do que progressista, mas não reacionário, quer manter o que está posto, conservar a ordem social e econômica, mas não querem uma ditadura militar e uma sociedade armada.
A religião influencia na política no Rio? O que tem de bom e o que tem de negativo nesta relação? Não esqueça que Edir Macedo e Silas Malafaia têm suas bases fincadas aqui.
A religião tem exercido forte influência na política do Rio. Além de não ser possível ganhar as eleições sem o eleitorado evangélico, muitos evangélicos ingressaram na política assumindo cargos no executivo e legislativo. A relação entre religião e política nunca deixou de existir, mas a religião voltou a interferir fortemente em questões políticas e jurídicas que eram vistas como assuntos laicos. Há quem diga que, além de uma militarização da política, estamos diante de uma evangelização da política, pondo em xeque a própria ideia de República, que formalmente torna a religião um assunto particular. Sua existência não existe senão de forma secularizada, ou seja, a religião é assunto de foro íntimo e não de Estado. Quando a religião se mistura em larga escala à política, e hoje pastores detêm meios de comunicação que exercem influência em todas as esferas, a polarização política tende a escalar e descambar para a violência, pois quando ela se alimenta da crença religiosa, dificilmente permite aceitar a diferença. Outra questão é pensar o porquê do crescimento evangélico e ingresso de seus membros na política: tem a ver com a deficiência de políticas públicas e carência da população encontrando apoio em grupos evangélicos que ocuparam espaços abandonados pelo Estado.