Roberta Sudbrack - Divulgação
Roberta SudbrackDivulgação
Por Sidney Rezende
A gaúcha Roberta Sudbrack escolheu o Rio de Janeiro para viver, abriu seu próprio restaurante e, com sua inventiva, elevou o padrão do seu ofício, e se tornou ainda mais poderosa do que já o era. Ela tem muito orgulho do que faz. Sudbrack é daquelas pessoas que quando perguntam: - "O que você faz?". Ela estufa o peito, dá um sorriso tímido, bem aconchegante, e enche a boca: - "Sou cozinheira". Por quase sete anos, a chef Roberta Sudbrack comandou a cozinha do Palácio da Alvorada, em Brasília, residência oficial de Fernando Henrique Cardoso e Dona Ruth. Ela foi a primeira chef de cozinha na história do Palácio.
Diferentemente de hoje, em que o presidente veste camisa de time de futebol para relaxar ou foge para não ser bicado pelas emas do jardim, na época de Sudbrack e FHC, eram tempos de jantares e banquetes destinados às autoridades estrangeiras, onde negócios de Estado faziam parte da agenda de conversas. Roberta e sua equipe já prepararam comidas originais para o Rei Juan Carlos e a Rainha Sofia, da Espanha; o ex-primeiro-ministro inglês Tony Blair; o ex-líder cubano Fidel Castro; Bill Clinton; Jacques Chirac e um fila enorme de expoentes da política e diplomacia. É bem verdade que o Brasil não vivia isolado como hoje. Nesta entrevista, a estrelada chef de cozinha brasileira Roberta Sudbrack nos conta o que mais a encanta neste país, onde os ingredientes que usamos são tão maravilhosos, o segredo da comida regional; a vantagem de se usar produtos orgânicos; como fugir do fast food tóxico, mas saber escolher o sanduíche de qualidade e o que ela aprendeu no Palácio, no seu restaurante e o drama do setor em meio à pandemia.

Você teve oportunidade de lidar pessoalmente com todos os tipos de pessoas dentro do Palácio da Alvorada. Seu cardápio foi apreciado por muitos influentes. A elite brasileira dá importância à culinária do nosso país?

O meu ofício tem a ver não somente com alimentar, mas também com expressar. Expressar uma cozinha que é riquíssima, que traduz um país não apenas de grandes dimensões, mas de um talento imenso. Nosso produto artesanal, que aliás não conhecemos como deveríamos, tem um valor incrível na nossa cultura e na nossa expressão. Era exatamente isso que fazíamos no Palácio da Alvorada, no período em que chefiei aquela cozinha, na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso. A ideia era mostrar para todos os convidados, fossem eles chefes de estado, membros do governo ou convidados do presidente, um país valioso dentro do prato. Apresentar produtos de todos os cantos do país, apoiar o pequeno produtor e conectar o convidado com a nossa cultura através da comida. Eu costumava chamar isso de diplomacia gastronômica, e foi uma fase importantíssima para a nossa cultura gastronômica e na minha carreira.

Grandes fornecedoras de comida servem empresas, escolas e presídios. Na outra ponta, para fugir da crise, os cozinheiros caseiros popularizaram as quentinhas. O que aprendemos sobre isso?

Humildade! É preciso rever esse conceito. Acho que num certo momento o ego passou a ser um ingrediente muito mais presente na cozinha do que o sal e a pimenta, tão fundamentais. Não é possível que depois de tudo isso que passamos, a gente não encare o espelho de frente, e perceba que é preciso rever muita coisa. Que é preciso escolher um quarto, daqueles que a gente joga tudo que não usa, ou não quer mais, e jogar o ego lá, trancar a porta e jogar as chaves fora. Listas, prêmios, estrelas, não serviram para nos livrar de todo o sofrimento que esta pandemia nos causou.

O que pode ser feito para ajudar os pequenos e médios empresários, donos de restaurantes para evitar uma catástrofe no setor?

Eu sou uma cozinheira, e portanto não posso garantir meus dotes de economista, mas certamente faltou uma política pública coordenada nas três esferas que desse conta da grandeza dos impactos da emergência sanitária. A pandemia evidenciou que as autoridades públicas não têm conhecimento do Brasil, dos brasileiros e do setor produtivo que mais emprega no país, que são as médias e as pequenas empresas. É uma questão de visão. As poucas iniciativas vieram na sua maioria do Legislativo. O poder público, sem distinção, não enxerga os que mais necessitam e tudo é ideologizado da pior maneira. Em contextos como esses que fomos, todos, atingidos de forma universal e profunda, era importante ousadia, coragem e liderança. Para quê? Para definir que esse ano estaria perdido – já que ninguém tinha muita informação sobre propagação, contaminação e controle da assistência sanitária às pessoas – e, a partir dessa premissa, que ninguém escolheu, mas que foi dada pelas circunstâncias de um vírus desconhecido e letal, construir para as pessoas e empresas políticas de apoio que levasse esse elemento temporal em conta. Mas, ao invés disso, se adotaram medidas de curto prazo – a maioria contam com prazos de 60 ou 90 dias -, tópicas e que não levam em conta a cadeia produtiva de cada setor e outras que só ficaram nos discursos dos anúncios midiáticos montado para cada esfera de governo, em uma competição, não por efetividade, mas para quem fica melhor na foto. Olhando somente para uma dimensão imediata, o que se imaginaria como mais adequado seria:

- Entender e aceitar o que a ciência estava dizendo sobre a Covid19.

- Entender e aceitar que essa circunstância da pandemia fez não só a receita das pessoas e das empresas despencarem, mas limitou significativamente o fluxo de entrada.

- A partir daí, se estabelecer uma linha do tempo de pelo menos 18 meses para essa travessia, e criar um planejamento de apoio econômico e social consistente e que contemplasse esse período. Ou seja, os Programas e Projetos seriam feitos levando em conta esse tempo, porque, na melhor das hipóteses, somente no primeiro trimestre do ano que vem, as engrenagens começarão a se lubrificar. As empresas precisarão fazer algum caixa para absorver os custos com a ampliação dos procedimentos de segurança sanitárias, dos protocolos e de tudo mais que será necessário até que um nível de segurança volte a fazer parte do nosso cotidiano.

- Houve uma flexibilização pífia para o FGTS de somente três meses, nada foi feito para ajustar esse prazo, mas o PIS e Cofins continuaram a ser cobrados sem nenhum prazo adicional ou programa de parcelamento, assim como a contribuição sobre o lucro líquido - lucro esse fictício diante da perda das receitas. De modo que os impostos (não só o Simples, mas todos os outros impostos, inclusive estaduais e municipais, como o ICMS, o ISS e até mesmo IPTU e os serviços de concessionária como luz, água e gás) dentro de uma política coordenada, esses impostos deveriam ter sido suspensos e colocados em um período de carência e somente retornar sua cobrança regular após esse período. Veja, não seria isenção. A apuração seria realizada e colocada em uma conta de crédito respectiva de cada esfera, o total desse valor, quando acabasse esse período, seria pago em parcelas de 36 meses e 48 meses, ou seja, se pagaria a partir desse período sempre a apuração normal e ordinária e uma parcela do imposto adiado.

- As linhas de créditos não chegaram.

- Falta lucidez. Ao invés de uma política econômica-social integrada, as autoridades preferiram a flexibilização atabalhoada sem sequer ouvir a ciência. Flexibilizaram e transferiram para os estabelecimentos a responsabilidade pelo controle e o monitoramento das pessoas. Pois serão eles que receberão as maiores multas, mesmo se estiverem cumprindo os protocolos, ou seja, os estabelecimentos já combalidos economicamente e que abriram para tentar faturar alguma receita que adie seu fechamento, tem que suportar todas as consequências econômicas e, ainda terão as despesas das multas. E das fiscalizações muitas vezes truculentas ao invés de esclarecedoras. Ninguém entendeu no governo que salvar a economia não é romper o isolamento, e, sim, ter políticas para as pessoas e empresas.

Qual sua explicação para a dificuldade de linhas de créditos para o setor de restaurante? Que histórias reais, alegres ou tristes, chegaram até você e que você pode nos contar?

Acredito que a razão é a mesma falta de coordenação, de entendimento e aceitação da realidade que nos atingiu. Os créditos precisavam ser fáceis e baratos e com muito tempo para pagar. O BNDES tem uma missão de desenvolvimento e deveria ter vindo em socorro de forma mais objetiva e amparar os créditos dos bancos que não querem emprestar sem garantias. O PRONAME, que parecia promissor, é cheio de amarras, restrito apenas a empresas optantes do Simples, ou seja, empresas de lucro presumido, mesmo com faturamento abaixo dos limites estabelecidos para o Programa, não têm acesso a essa linha de crédito, nem nos bancos oficiais. O Banco Central precisava também ter entrado com mais força na regulação junto aos bancos privados, para obrigar a facilitação dos créditos, com carências que não poderiam ser inferiores a 8 meses, prazos de pagamento de pelo menos 36 meses e juros baixos fixados pelo BC, isto é, uma política específica para uma situação específica e não enxertos que terminaram não funcionando nas estruturas rígidas dos bancos privados. O BNDES e o Banco Central deveriam ser os garantidores. Muitos foram os anúncios, propagandas bonitinhas, mas, na prática, as dificuldades foram muitas. Muitas vezes não se tratava nem de crédito novo, mas de negociar dívidas existentes. Foram inúmeras as empresas e pequenos produtores que foram excluídos. Por outro lado, houve de cada um de nós muita solidariedade, generosidade e muita vontade de ajudar. Nossos clientes também, muitos fizeram questão de ajudar, seja doando quantias para usufruir no futuro. Parceiros também, negociando faturas, continuando a fornecer, mesmo sem uma expectativa de receber a curto prazo, amigos organizando vaquinhas virtuais (os chamados crowdfunding), o Sud Pássaro Verde foi beneficiado por essas ações e isso nos ajudou muito a chegar até esse momento, ainda acreditando que seria possível fazer essa travessia e chegar vivo lá adiante. Algumas empresas maiores também fizeram projetos para apoiar restaurantes e produtores locais. Todas essas iniciativas foram lindas e conseguiram manter muitos sonhos e empregos. Mas certamente, se tivéssemos Governo, teríamos salvado muitas outras empresas, preservado o trabalho de mais pessoas, e no pós-pandemia estaríamos mais fortes para fazer a roda girar de novo e, quem sabe, em curso mais virtuoso.

Todos estamos nos reinventando nesta pandemia. Você fechou seu restaurante, mas não impediu sua arte de cozinhar chegar ao cliente. Que lições você pode compartilhar?

Eu sou uma pessoa que acredito nos sonhos. Minha história de vida demonstra isso, comecei minha vida profissional vendendo cachorro-quente nas ruas de Brasília para me sustentar e sustentar a minha avó. Cheguei a ocupar um cargo que já foi dos mais importantes na carreira: Chef do palácio presidencial. Tive um restaurante que foi reconhecido mundialmente e conquistei tantos triunfos com a minha dedicação à cozinha, que mal saberia enumerar. Além disso, eu sou apaixonada pela arte, seja ela qual for e em qualquer expressão. E por isso mesmo acredito que a resistência é fundamental. Estamos vivendo um período nefasto em relação a qualquer expressão artística, e a cozinha não deixa de ser uma dessas expressões. Não tivemos nenhuma ajuda realmente significativa, milhares de empregos foram perdidos, inúmeros negócios e sonhos foram sucumbidos. Nós fomos provavelmente um dos únicos lugares que se manteve aberto logo no início da pandemia – tomando obviamente todos os cuidados e precauções quanto à segurança de todos os nossos colaboradores – porque me recuso a perder uma batalha sem lutar. Acho que lutar faz parte da vida, enobrece a vida e faz a vida ter muito mais sentido.

Nossa culinária regional é deliciosa. O que te fascina quando tem contato com o talento tão variado do cozinheiro brasileiro? O que tem surgido de mais interessante nesta área?

Eu costumo dizer nas palestras que ministro, no Brasil e no exterior, que a cozinha brasileira não precisa parecer exótica ou inventar muita moda, porque nós temos uma coisa que todas as outras cozinhas gostariam de ter: Nós somos ricos! Nossa cozinha é tão diversa, quanto riquíssima. Nossos ingredientes são infindáveis. Por mais que a gente pesquise - e eu sou uma pessoa que tenho a pesquisa como religião – não conseguiremos conhecer e explorar tudo.

Sempre se diz que os produtos orgânicos são caros. Se são, como barateá-los? O que existe de disponível eles são confiáveis?

A fórmula é simples, quanto mais consumirmos produtos orgânicos, mais acessíveis eles se tornam. Mais famílias de pequenos agricultores sobrevivem e outras se sentem incentivadas a plantar também. É óbvio que um tomate que você conhece o rosto de quem plantou, colheu e transportou até a sua cozinha, vai e deve custar mais caro do que um tomate que está disposto na gôndola do mercado e que foi plantado e cultivado cheio de veneno para que rendesse mais. Mas o fato de termos consciência disso e privilegiar o pequeno produtor, certamente fortalece a cadeia produtiva e, no futuro, barateia o processo. A consciência e incentivo do governo também são fundamentais. Não quer dizer que algum dia será mais barato do que o tomate da gôndola do supermercado, mas com certeza será mais acessível. Isso já acontece em grande parte do mundo.

A luta de alguns países é evitar que o fast food domine o paladar dos mais jovens. Esta deve ser também nossa preocupação?

Com certeza. Até porque refeição rápida não precisa ser sinônimo de comida ruim. A velocidade da vida ajudou para que surgissem opções tão saudáveis, quanto saborosas. Já existem muitas marcas que apostam nisso e oferecem produtos incríveis para saciarem a fome ainda que na correria.


Roberta, qual sua definição de comida brasileira?

Cozinha brasileira antes de qualquer coisa é afeto. A nossa relação com a comida, culturalmente, está ligada a esse sentimento. É encontro, é troca, é risada, rapa de tacho, receitas familiares. É mesa na cozinha, é fogão à lenha, rapa de tacho. É possível traduzir tudo isso, que tem uma ligação fortíssima com a simplicidade, numa cozinha moderna, de vanguarda? Claro que sim, mas sem esquecer que a conexão com esse afeto precisa estar presente. Foi o que eu busquei e apresentei, durante quase 12 anos de existência do restaurante Roberta Sudbrack. Fomos vanguarda, ousadíssimos em tudo, mas a rapa do tacho e o cheirinho de fogão à lenha nunca deixou de marcar sua presença. A cozinha brasileira é dependente desse afeto, ele nos conecta com sentimentos que são o fio condutor para a sua expressão.