José Gomes Temporão - Agência Brasil
José Gomes TemporãoAgência Brasil
Por Sidney Rezende
O Brasil caminha a passos largos para ser um dos mais trágicos exemplos do que não se deve fazer no combate à pandemia de Covid-19 no mundo. A marca de 100 mil mortos é mais que simbólica. É o estraçalhamento emocional de famílias que nunca mais poderão reencontrar seus entes queridos. O mais amargo é saber que esta ida sem volta, na maioria dos casos, poderia ter sido evitada se o setor de Saúde tivesse recebido mais cedo a estrutura necessária para combater a propagação do coronavírus. Segundo o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e ex-ministro da Saúde de 2007 a 2011, José Gomes Temporão, colecionamos uma sequência de erros. A análise de Temporão é perversa: "Com a aprovação da emenda 95 que congelou os gastos sociais por 20 anos, o SUS teve seu orçamento comprometido e, portanto, dispôs proporcionalmente de menos recursos para fazer frente às demandas de saúde da população. Todo esse contexto é enormemente afetado pela pandemia da Covid-19, e os quase 100 mil óbitos registrados até aqui são a expressão clara da incompetência do governo federal em articular e coordenar um esforço integrado da sociedade, da ciência, da medicina e da saúde pública no enfrentamento da doença".

Qual a sua avaliação dos erros e acertos do que se faz hoje no Ministério da Saúde no Governo Bolsonaro?
Difícil encontrar acertos. A conjuntura que tem início em 2016 e que se mantém até hoje, tanto no campo econômico quanto social, é altamente prejudicial à saúde da população. Desemprego estrutural, subemprego, interrupção do Minha Casa, Minha Vida no espaço habitacional, perda de renda, transporte público precário, deficiências no acesso à água e saneamento; são dimensões que afetam diretamente as condições de vida e, portanto, as condições de saúde da população. Além disso, os ataques ao Estatuto da Criança e do Adolescente, as restrições ao amplo acesso à educação e informação e a fragilização das políticas voltadas aos direitos sexuais e reprodutivos; as reiteradas ameaças ao estatuto do desarmamento; o ataque à educação pública e a ameaça à ciência nacional com o drástico contingenciamento dos orçamentos setoriais; as ameaças à saúde, ao meio ambiente e à sustentabilidade com a liberação sem critério de agrotóxicos e pesticidas; a nova política de drogas, que possibilita a internação involuntária de usuários, prioriza as comunidades terapêuticas de cunho religioso e a abstinência como objetivo do tratamento da dependência, ao invés das políticas voltadas ao tratamento de saúde de usuários, focadas na redução de danos; conformam um quadro muito preocupante de violação de direitos e de retrocesso no campo das políticas sociais. No campo das políticas de saúde o quadro também é grave. Com a aprovação da emenda 95 que congelou os gastos sociais por 20 anos, o SUS teve seu orçamento comprometido e, portanto, dispôs proporcionalmente de menos recursos para fazer frente às demandas de saúde da população. Todo esse contexto é enormemente afetado pela pandemia da Covid-19, e os quase 100 mil óbitos registrados até aqui são a expressão clara da incompetência do governo federal em articular e coordenar um esforço integrado da sociedade, da ciência, da medicina e da saúde pública no enfrentamento da doença.
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A administração do setor de Saúde no Brasil é uma operação complexa. Quais os gargalos não resolvidos?
São muitos os desafios. Na questão do financiamento, o fato é que o SUS está brutalmente desfinanciado. A participação dos gastos governamentais no gasto total é de apenas 46%, e a maior parte do ônus recai sobre as empresas (26%) e as famílias (28%). Enquanto, em 2018, o setor de planos e seguros gastou um per-capita de cerca de R$ 4 mil ao ano para atender aos 50 milhões de brasileiros que usam sua estrutura assistencial, o SUS dispôs de apenas R$ 1,6 mil per-capita ao ano para atender em todas as suas necessidades os 150 milhões de cidadãos, que dependem totalmente do SUS para suas necessidades em saúde. Nossa dependência de tecnologias desenvolvidas e produzidas fora do país ficou evidente agora com a pandemia. Temos que fortalecer nossa capacidade tecnológica de produzir aqui as tecnologias estratégicas para nosso sistema de saúde. O SUS precisa ser modernizado através da estruturação de um novo arcabouço jurídico-institucional que lhe permita dispor de um modelo profissional de gestão, com metas e indicadores, transparente e com carreiras para as diversas profissões que o compõe. A atenção primária em saúde, através da estratégia saúde da família, deve ser fortalecida e qualificada como porta de entrada única do sistema. E, por fim, temos que defender o SUS como patrimônio da nação e que deve ser fortalecido e qualificado e implantado efetivamente como sistema universal para todos.
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Qual a diferença de se controlar a H1N1 e dominar a Covid-19? O senhor enfrentou várias epidemias no Brasil. O que senhor aprendeu?
A pandemia de H1N1 de 2009 tem diferenças importantes em relação ao momento que vivemos. São vírus distintos com capacidade de transmissão e de causar quadros graves bem distintos, muito maior em relação à Covid 19. Do que aprendi, destaco alguns pontos essenciais sem os quais a possibilidade de fracasso é grande. Em primeiro lugar, deve-se ter um total grau de coesão interna entre os entes federados (União, estados e municípios); em segundo lugar, a União tem o dever intransferível de liderar e coordenar o esforço nacional de enfrentamento da pandemia; em terceiro lugar, trabalhar em conjunto com a ciência, ouvir a ciência; quarto, dispor de um plano de comunicação competente e transparente; e, por fim, respeitar e valorizar os profissionais de saúde.
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Estamos próximos da vacina contra o coronavírus?

Existem várias vacinas em fase final de testagem e duas das mais promissoras estão sendo testadas aqui em nosso país em duas instituições públicas e seculares: Instituto Butantan e Fundação Oswaldo Cruz. Essas duas instituições são dois dos maiores produtores globais de vacinas e produzem grande parte das vacinas utilizadas no nosso programa de vacinação (PNI). E o Brasil poderá estar (caso os testes sejam positivos em termos de segurança e eficácia) entre o seleto grupo de países em condições de produzir a vacina. Na verdade, foram décadas de investimento do país nessas instituições, que, agora, demonstram como investir em ciência e tecnologia é fundamental para a segurança do país, para o desenvolvimento e para a economia de recursos que será também expressiva.
O Governo Federal desdenha a ciência e corta seus recursos. Caiu a ficha que esta atitude se volta contra a nação?
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Temos evidências de que, para a maior parte da população, a ciência é respeitada e valorizada. Infelizmente, o governo federal persiste em sua saga anticientífica e negacionista, o que impacta sobremodo não apenas nossa capacidade de lidar com a pandemia, mas também a possibilidade de nos desenvolvermos como nação soberana capaz de implementar um modelo de desenvolvimento, que nos permita avançar na melhoria das condições de vida de nosso povo.
Qual a importância do SUS para o nosso país?
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Antes de 1988, tínhamos um sistema de saúde privatizado, fragmentado, descoordenado, que oferecia serviços curativos predominantemente para três tipos de brasileiros: os ricos, que pagavam pela assistência à saúde; os formalmente inseridos no mercado de trabalho, que usavam a previdência social; e a grande maioria da população brasileira, que era objeto da caridade, da filantropia ou do abandono. Não é exagero afirmar que naquela época a maioria da população brasileira estava completamente desassistida e abandonada do ponto de vista de acesso e oferta de uma estrutura de qualidade, a tempo e à hora para cuidar de sua saúde. O surgimento do SUS coloca a Saúde em uma outra dimensão, em uma outra perspectiva, como direito, com um sistema descentralizado, com participação popular, e sendo dever do Estado. Nos últimos 30 anos, o SUS ampliou o acesso e a cobertura impactando os indicadores de saúde: a mortalidade infantil caiu de 53 para 14 por mil, a expectativa de vida aumentou de 64 para quase 76 anos e as desigualdades sociais na saúde foram reduzidas. A Estratégia de Saúde da Família do SUS é o maior programa de atenção primária do mundo, cobrindo cerca de 70% da população brasileira. Todos os anos, o SUS realiza 10 milhões de internações, mais de 2 milhões de partos, e aplica 300 milhões de doses de vacinas. Essa é a maior política pública que nasceu da sociedade brasileira e se estruturou na Constituição Federal como um direito de toda a população. Portanto, ele é uma conquista do povo brasileiro, uma conquista da sociedade brasileira e que deve ser defendido e aperfeiçoado.