Zélia Duncan - Roberto Setton / Divulgação
Zélia DuncanRoberto Setton / Divulgação
Por O Dia
Os últimos três anos têm sido muito movimentados para Zélia Duncan. Ela é popular há muito tempo como cantora, compositora e escritora, começou profissionalmente em 1981. Há um ano, emplacou o álbum "Tudo É Um", indicado ao Grammy Latino-2019. Mas a agitação a que nos referimos é de outro gênero. Zélia transformou-se numa poderosa influenciadora digital. Daquela que bota a cara para apanhar, critica os poderosos abertamente, enfrenta haters, não dá espaço ao azar quando do outro lado tem alguém contra a democracia. Ao vice-presidente: "Mourão prefere questionar a tecnologia, do que combater o fogo, que devasta nossas matas". Ou, "o ministro da Educação nesse governo, cumprindo a função de fazer parte de um governo homofóbico e ignorante. Nada de novo, nada de bom pode vir dali". Quer dizer, Zélia Duncan canta, compõe e escreve, mas também faz política e, na sua esteira, já acumula quase meio milhão de seguidores no Twitter. Nesta entrevista, ela abre o coração e responde rigorosamente todas as perguntas com a mesma sinceridade que tem sido sua marca atual. Zélia sabe que é um caminho sem volta, e também tem consciência que o que faz é necessário, indispensável.

Estamos num mundo de polarização política intensa e em meio a uma pandemia. O que esse cenário muda nas manifestações artísticas a partir de agora?

Já faz um tempo que andamos assim. Eu diria que desde a funesta campanha eleitoral, e nós, artistas, sofremos muitos ataques, pelo simples fato de, em tese, significarmos liberdade para ser e pensar. Inventaram jargões fakes sobre lei Rouanet, por exemplo, entre outras coisas. Mas penso que é preciso seguir com o mínimo de coerência, apesar do possível medo. Não dá pra não ser o que sou, pelo contrário, polarização me deu mais força para entender de onde venho e como quero me posicionar. Não pode agir com medo de perder seguidores e público, isso esvazia a arte e a discussão.

Recentemente, você fez uma parceria com Xande de Pilares para a música "Sobreviver", que é sobre o comportamento das pessoas durante a pandemia. Como surgiu essa ideia?

Estávamos confirmados há pouco tempo e tenho falado muito disso nas minhas composições, que hoje já são muitas, sobre esse tema. Mas a melodia de Xande é instigadora, tem uma alegria. E, na letra, ainda não sabíamos o quanto seríamos abandonados. Eu falo que "Vai valer, cada um de nós vai vingar, da perifa ao mar, se cuidar, como tem que ser, a dor tem que valer, não vai ser em vão”. Os mais pobres e frágeis estão, como sempre, pagando a conta, e o Brasil está num momento de abismo. Eu sinto muito. A gente continua fazendo música, para pensar e se aliviar junto com as pessoas.

Você é muito atuante nas redes sociais. Como você lida com os ataques? E o que de produtivo se pode extrair desse ambiente virtual?

Depois de um tempo, você entende que aquilo não é exatamente para você, é para qualquer um que se mostre contrário à situação. Você entende que já não estamos numa democracia de fato. Vivemos um fascismo, uma teocracia, um estado autoritário, portanto violento. A internet é muito maléfica, tanto quanto revolucionária. Eu enfrento Twitter, Instagram e pouco Facebook. Bloqueio muitos robôs e não ofendo, embora diga o que penso e use ironia muitas vezes para fazer isso. Mas venho aprendendo a não ser kamikase, por exemplo, tentar ser a mais produtiva possível e, principalmente, ajudar onde puder. Mas as vezes preciso dar um tempo e dou.

O que você espera do eleitor nas próximas eleições deste ano e de 2022?

Gostaria de ver um movimento, uma luz no meio desse túnel que é comprido. Gostaria de ver Crivella, com suas garras gosmentas, longe do Rio. Manuela, em Porto Alegre, e Boulos, em São Paulo. Gostaria de ver mais mulheres na política. As mulheres negras estão dando um banho de disposição e firmeza. Queria ver essas pessoas com cara de gente, nos representando. Tudo para te dizer que não sei o que esperar. É assustadora a aceitação que esse governo destruidor tem ainda hoje.

As pautas LGBTs progrediram nos últimos anos, mas ainda há um caminho pela frente. A onda conservadora pode alterar isso? O que fazer para avançar?

Resistir, sempre. Agora, o ministro da Educação, que só está lá para isso, mostrou a homofobia de frente e vamos para cima dele, porque é crime. Eles não se intimidam, se sentem protegidos pelo presidente, mas ainda estamos vivos, bem vivos, e somos muitos que querem ver nosso país mais humano e honesto. Coisa que nunca foi de fato, mas agora estamos ladeira abaixo. Eles têm orgulho em massacrar, para angariar votos. Gente como Flordelis, Pastor Everaldo, Damares, quer ser a cara do Brasil.

Apesar de o Brasil ser um Estado laico, a política e a religião têm se misturado. Em seu discurso na ONU, o presidente Bolsonaro falou sobre "cristofobia". Como você avalia esse cenário?

Um discurso baseado em mentiras. Todos sabemos. Esse momento não tem nada de laico e vai piorar até melhorar. Ninguém ataca uma pessoa com bíblia na mão. As pessoas atacam LGBT’s, negros, indígenas e mulheres, isso sim. E, agora, o meio ambiente morre nas mãos de quem se diz cristão e patriota. Estamos do avesso.

Como você imagina o Brasil daqui a 10 anos? Tem uma visão mais otimista ou pessimista?

Desculpe, não tenho. Espero que haja uma reação a qualquer momento, mas não saberia prever nada. Temos muito que recuperar, para recomeçarmos a construção de uma sociedade laica, justa, antirracista, limpa, que nunca fomos de fato.