Conforme a coluna já havia noticiado, Madalena, filha de Tunico da Vila, foi diagnosticada com síndrome da hipoplasia do coração esquerdo. Agora, perto da hora do parto, o programa Bem-Estar vai mostrar o dia a dia da bebê, que passará por cirurgia cinco dias após nascer. Candomblecista assumido, Tunico ouviu as maiores barbaridades de seus irmãos no santo e também de pessoas de outras religiões. Disseram que a doença de Madalena poderia ser 'castigo'. Cansado de tanta atrocidade, o músico, ogã e filho de Omulu, escreveu uma carta aberta e enviou para esta coluna.
"Nos tempos do maior 'holocausto', termo a que me refiro como perseguição e extermínio, que foi a escravidão, nós afro-brasileiros tivemos que lidar com o medo da prática de cura em nossa fé. A história da Escrava Anastácia, princesa negra sequestrada, levada ao cativeiro e torturada é parte desse contexto. Ela salvou o filho dos senhores escravocratas com suas rezas ancestrais e o milagre foi creditado aos santos católicos que ficavam em cima dos assentamentos dos Orixás nas senzalas. Uma estratégia da época para que as divindades não fossem quebradas ou retiradas de lá. No século XXI a negociação cultural continua permeada de violências, vide os casos das casas de santos invadidas e os santos quebrados nas favelas cariocas.
Falo da cura, um rito sagrado em qualquer religião, pois sou filho do Orixá responsável por essa área espiritual na minha, Omolú. Me permito a andar com os meus fios de contas, pois essa é a minha identidade, o meu pertencimento nesse mundo, e por essa identificação algumas pessoas me procuram quando possuem necessidades espirituais, mesmo nãos sendo um zelador e sim um Tata(ogã). Muitos dos que usam termos chulos como 'chuta que é macumba' preferem esconder onde e a quem recorreram. O velho medo que me faz lembrar o episódio da irmã de pele Anastácia.
Mas aprendi que a transformação começa por nós mesmos. Eu como filho de Orixá, terei uma filha com uma cardiopatia grave que se chamará Madalena, ela na minha religião é considerada uma abiku, crianças que de tão evoluídas, vem ao mundo fazer uma rápida passagem para morrer, e quando acontece é festa no Orum e tristeza aqui na Terra. Mas em alguns casos são feitas intervenções com os deuses para a sua permanência no plano material. Eu cuidarei do coração dela através da minha fé e tenho muito orgulho disso. Não só os deuses brancos salvam. Meus Orixás também são capazes de salvar.
Não irei contar para minha filha histórias de Odim, Branca de Neve.
Contarei a ela sobre Oxum, Dandara, Ogum, Nanã e Pantera Negra, contarei toda a sua ancestralidade construída por heroínas, heróis e matriarcas.
Nossa religião possui líderes mulheres, o que não acontece em outras, temos como herança africana o empoderamento feminino.
Minha filha é preta e crescerá sabendo que vai enfrentar preconceitos nesse mundo machista, sexista e etnocentrista. Você que é candomblecista, conte aos seus filhos sobre os seus Orixás e não escondam fundamentos, porque isso foi construído socialmente pelos colonizadores e "novos colonizadores" para nos inferiorizar. O sonho da liberdade religiosa precisa permanecer em nossos corações. Os nossos filhos, netos, tataranetos irão trabalhar, estudar, se formar, amar e viver os seus sonhos sem ter que pagar com a vida por isso como aconteceu com Anastácia. O candomblé abraça os héteros, GLBTs, ricos e pobres de todas as raças, todos aqueles que querem viver.
Pois quem busca a cura quer vida. Os Orixás por meio de Tia Ciata curaram Venceslau Brás e Omolú por meio dos babalorixás Paulinho da Pavuna e João Deloiá me curaram.
Viva o Candomblé! Viva o Samba! Atotô !"