O videogame, para ele, é a volta à pré-história, aos instintos primitivos, ao olhar acelerado para todos os lados
Por daniela.lima
Rio - Entre as vantagens da profissão de jornalista da área cultural, está o fato de podermos ouvir pessoas inteligentes. Convidado pela presidente do Museu da Imagem e do Som, Rosa Maria Araújo, para integrar a mesa do ‘Depoimento Para a Posteridade’ de Antônio Fagundes, que ainda contava com a participação do seu grande parceiro e amigo Stênio Garcia, tive a oportunidade de passar uma tarde das mais agradáveis. Mais que um grande artista, Fagundes é uma figura humana ímpar. Lúcido, articulado, generoso, reto, bem-humorado.
Fui meio receoso, já que teatro está longe de ser minha especialidade. Mas me viro bem no assunto cinema. Quando fui apresentado à dupla, não resisti, e meu santo tiete baixou na hora.
— Desculpa, mas não posso deixar de dizer que estou emocionado ao encontrar os heróis da minha infância. Lembro-me de cenas inteiras do Pedro e do Bino (os caminhoneiros da série global ‘Carga Pesada’, que teve sua primeira fase nos anos 1970). Vocês devem ouvir isso todo dia, não?
Acho que eles não se incomodaram, porque o clima do depoimento foi ótimo. Também pudera, Fagundes é uma máquina de trabalho que fez mais de 50 filmes, mais de uma centena de peças, afora seus personagens magníficos em séries e novelas.
Em algum momento, o doce Stênio lembrou a voracidade com que seu ex-parceiro de boleia se dedica à leitura. Então, Fagundes praticamente fez um tratado sobre livros, internet, videogames e a raça humana. Nosso personagem não tem e-mail, Facebook, Twitter, WhatsApp, e, apenas uma vez na vida, com o propósito de aprendizado, usou o Google. Detestou.
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Para dizer que não é totalmente desconectado, há algum tempo, ele comprou um PS3, o tradicional Playstation. Ficou viciado em jogos de ação, e, na primeira semana, virou noites inteiras diante do console. Já passei por isso, mas estou em tratamento. Quando percebeu que havia abandonado os livros, resolveu voltar à leitura. Não conseguia sair da primeira página.
Então, segundo ele, foi que caiu a ficha. O ser humano, no início, não tinha foco. Vivia olhando para todos os lados em busca da caça ou de não ser caçado por um predador. Com o tempo, passou do grunhido para os fonemas, as palavras, as letras, até criar a escrita e os livros. Pronto, os livros foram o nosso foco máximo, o momento de concentração supremo, a imersão absoluta em nossas próprias almas, o desvio de nossa dispersão original.
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Já o videogame, para ele, é a volta à pré-história, aos instintos primitivos, ao olhar acelerado para todos os lados, à falta de ar, à busca incessante sabe-se lá pelo quê, assim como o bombardeio de informações, nem sempre confiáveis, da internet. E tudo o que o grande ator fez em sua vida foi trabalhar, não como um passar de fases sem fim, mas focado em seu único objetivo, que deveria ser o de todo artista, ficar próximo de “seu João e dona Maria”, sua plateia.
Tempos depois, ele ganhou um iPhone de seus filhos. Quando começou a receber mensagens pelo WhatsApp, ligou para eles e reclamou. Se o telefone já o incomodava pela impessoalidade, pela distância, não ouvir a voz dos filhos já era demais.
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Encontrar o Fagundes não é fácil, que o diga a Claudinha, Gerente de Produção do museu. O iPhone vive desligado, e internet, nem pensar. “Podem me passar um fax. Mas ninguém mais tem fax”, brincou.
O videogame, sua incursão aos tempos das cavernas, ficou relegado a um mísero dia mensal. Para o bem da humanidade, sua cabeça brilhante voltou aos livros.